sábado, 30 de dezembro de 2017

Vida boa pra todos em 2018

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto
 
 
esse Amor que move o Sol e as mais estrelas
Dante Alighieri*

A VIDA ensina que a esperança brota dos escombros. Quando parece que tudo está perdido, que nada mais há a resgatar, ouve-se a voz de alguém, um sopro de luz irrompe da ruína, ilumina a densa sombra, a vida teima em vingar.
 
Acredito no futuro do meu país porque acredito que as pessoas de bem (que querem uma vida melhor não apenas para si mas para todos) serão capazes de escolher o bom caminho, retirando-nos do poço fundo onde a corrupção de agentes políticos, empresários e seus acólitos nos levou.
 
Creio no poder transformador do coração de cada pessoa. Penso que a faxina começa dentro de cada um, depurando a própria consciência, alterando comportamentos antissociais, renovando o pacto com a vida geral. De pouco adiantam bibliotecas de leis, se não se humanizam os valores.
 
Para transformar a realidade é necessária uma profunda mudança do padrão moral e ético do brasileiro. Vale dizer: precisamos repensar a maneira como nos relacionamos com o próximo, deixando de vê-lo como inimigo. Temos que nos colocar no lugar do outro, sentir a sua dor.
 
Nas pequenas coisas começa a reinvenção de uma sociedade mais justa. 

Não há mais espaço para ilusões. Não podemos esperar soluções de políticos inescrupulosos, esses mesmos que nos conduziram ao caos. É hora de renovar, renascer, votar em pessoas honestas, comprometer-se com o bem comum acima do individual.

Precisamos urgentemente de amor social.
 
Temos um ano todo para tentar acertar, fazer da vida algo diferente e bom. Façamos por merecer o Novo Ano. 
 
_________
*A Divina Comédia. Dante Alighieri. Tradução, prefácio e notas de Hernâni Donato. Ilustrações de Gustave Doré. Abril Cultural, São Paulo, 1981.
 

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Cálido

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto
 

Preciso escrever
o poema
que vai salvar
esse dia

o poema cálido
para atravessar
o tempo difícil
que ainda tenho
pela frente

o poema que vai
expulsar
a vontade
de morrer
que chega
aos poucos
como um felino
_____________ 

Do livro Memorial da vida breve, Jorge Finatto, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.
 

domingo, 24 de dezembro de 2017

Uma criança nasce

Jorge Finatto
 
Nascimento de Cristo. Konrad von Soest (1370 - 1422)
 
 
UMA CRIANÇA NASCE. Enche a casa esquecida e triste de alegria e esperança. Se esta criança é JESUS, é o próprio coração das pessoas que renasce em todas as casas.
 
Feliz Natal com Cristo!
 

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

O eremita viajante

Jorge Finatto

Monte Fuji. pintura de Katsushika Hokusai (1760 - 1849)

                   
                   imóvel contemplo a lua
                   e os outros pensam
                   que sou cego
                                        Matsuo Bashô ¹


NA TARDE-NOITE de chuva fina (o silêncio monta guarda em volta da casa), leio poemas de Matsuo Bashô (1644 -1694). Já nos primeiros haikais me vejo diante do Monte Fuji coberto de neve. Atravesso um riacho de pés descalços. Ouço o pássaro no ramo da cerejeira. Converso com uma borboleta. Encontro o amigo em meio à viagem por caminhos de chão batido.

Bashô adorava botar o pé na estrada, viajava em busca de lugares e encontros, hospedava-se na casa de quem o acolhesse. Vivia com simplicidade perto da natureza (seus discípulos construíram para ele uma cabana rústica onde morar, nas margens do Rio Sumida, e plantaram uma bananeira no pátio). Ele então adotou o nome da bananeira (bashô) como seu nome literário. Gostava de sentar-se sob suas folhas e sentir o vento e a chuva passando por elas.

Bashô era só e era muitos.

Por ocasião da partida de Sôha, que vivia na casa ao lado.

a casa do lado
ficará em silêncio
como um velho ninho ²

O grande poeta e viajante japonês nos leva ao umbral do mistério. Uma vez lá, deixa por nossa conta penetrá-lo ou abandoná-lo. A experiência para quem nele se aventura é tocante e plena de revelações.

Os versos de Bashô exercem fascínio pela aguda e original percepção do universo. As coisas são vistas como da primeira vez. Tudo é novo aos sentidos e ao pensamento. O mundo se revela ante o olhar inocente.

Este olhar inaugural volta-se para as coisas do dia a dia. Abre-nos a mente diante daquilo que por vezes parece corriqueiro e desinteressante. Isto é possível graças a uma linguagem que foge ao habitual e ao ruído, repleta de silêncios.

A poesia que Bashô nos legou é cativante e bela como um amanhecer. Simples nos seus motivos, tem alcance transcendente no coração do leitor. É um golpe de ar puro e fresco na alma ressequida. Uma excelente apresentação de sua obra encontramos no livro O eremita viajante.

Como era sua vontade, o poeta foi sepultado no mosteiro de Gichu-Ji, nas margens do Lago Biwa. Em sua sepultura foi plantada uma bananeira.

a minha pele
perderá o calor
e ficará fria ³
 
_________

1, 2, 3 - O eremita viajante (haikus - obra completa). Matsuo Bashô. Editora Assírio & Alvim. Organização e versão portuguesa por Joaquim M. Palma. Porto, Portugal, 2017.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Canção da bruma

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

SENHOR
quando chegar
a minha vez
de cruzar a ponte
deixa eu levar comigo
no alforje de nuvem
os dias de sol

as tardes
de outono

os pinheiros
da serra onde
nasci

deixa eu levar
o som do riacho

as antigas
conversas
da Rua São João

me concede
a memória
dos amigos
de infância

na bruma
que serei
me alcança
um bosque
e pássaros
para tecer
a minha casa

___________

Poema do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Escutai os pássaros

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto, 6/12/2017. o beija-flor e as flores de lavanda
 

NA CIDADE grande o convívio com os pássaros é difícil. Quase tudo trabalha contra eles. Excesso de edifícios, de barulho,  de luz artificial, escassez de áreas verdes, de alimento, de ar para voar, respirar, cantar. Mais a indiferença das pessoas. Uma danação.
 
Em Passo dos Ausentes é diferente. Existem pássaros em abundância e eles podem viver a sua vidinha em paz e liberdade. Que o digam os delicados beija-flores nos canteiros de lavanda!
 
Hoje enquanto caminhava pelo quintal, no sossego da tardinha, escutei o canto dos passarinhos nas árvores. De várias espécies, cantavam a capela. Tão doces eram os cantos que por um momento senti que Deus andava por perto, maravilhado como eu.
 
Poucas vezes me senti tão bem. Fiquei ali entre os cedros, pinheiros, magnólias, roseiras, jasmineiros. Me sentindo pleno e humilde. 
 

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

O jardineiro amoroso I

Jorge Finatto

photo: jfinatto, 2/12/2017
 
A VIDA é breve, raro leitor, e os livros que não li não cessam de brotar nas livrarias. Enquanto isso, constelações deles hibernam nos sebos. É impossível ler tudo isso numa só existência. Sem falar que tenho coisas pra fazer e meus próprios textos pra cuidar, apesar de não ter leitores.

Escrevo para fantasmas. É correr atrás do vento. Mas há quem goste das fotografias pelo menos.
 
Um jardineiro amoroso deve cuidar do seu jardim, sem esquecer de arrumar tempo para admirar os jardins alheios. Tem muita coisa bonita pra ver fora de nós. Aí está a graça. Serve de consolo quando cá dentro faz escuro.

Importante é não perder o gosto e a beleza de cultivar e se deixar cultivar.

O resto, aí as frustrações, desânimos, incompreensões, etc., passa, passa, que a vida é só um suspiro. Um longo suspiro. Mas a viagem, mesmo nos dias sombrios, é bela.

Não sei por que mas este texto me deu vontade de tomar um café no Café Tortoni,* em Buenos Aires, acompanhado de um doce portenho. Vá saber.

__________
*Café Tortoni:
https://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/search?q=Caf%C3%A9+Tortoni

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Não me abandones

Jorge Finatto
a Chet Baker
 
photo: jfinatto

 
Não me abandones
povoa a noite
com teu suprimento
de afeto

enche o deserto
com teus passos

em segredo
devolve-me
a delicadeza
daqueles dias

me dá outra vez
o diamante
da tua
presença


________

*Do livro O Habitante da Bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
Leia também Chet on poetry:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/uma-viagem-sentimental.html
Chet Baker (1929 - 1988)
 

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

As virgílias e o viajante

Jorge Finatto

desenho: jfinatto


SIM, RARO LEITOR, nascemos de mãos dadas com nossa irmã gêmea, a solidão. Mas a vida não há de ser um buraco só dentro do peito. Tinha de ser mais, tem de ser mais. Ninguém veio ao mundo pra ser deserto.

Encontrar seres humanos, dividir o vagão do trem, é o lado mais bonito e luminoso da viagem.

Mas, em caso de urgência, o viajante tem pelo menos as virgílias.

São minúsculas borboletas que não têm mais que um centímetro de envergadura nas asas. Revoluteiam ao redor dele. São dezenas, cada uma com sua cor viva: violeta, azul, púrpura, amarelo, lilás, laranja, branco, preto.

As virgílias surgem do nada. Acendem a solidão como lamparinas em miniatura. Ficam voando em volta do viajante como efêmeras lanternas com piscar intermitente.

As virgílias depois vão-se embora. Apagam aos poucos suas luzes até que nenhuma mais resta.

Nenhuma. E o viajante dorme esperando amanhecer.


quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Raymond Carver

Jorge Finatto

Raymond Carver. fonte: Wikipédia

Todo poema é um ato de amor, e de fé. Existe tão pouca recompensa para a escrita de poesia, seja monetária ou, você sabe, em termos de fama e glória, que o ato de escrever um poema tem de ser um ato que se justifique em si mesmo e realmente não possua nenhum outro objetivo em vista. Para querer fazê-lo, você realmente precisa amar fazê-lo. Nesse sentido, então, todo poema é um "poema de amor".

Raymond Carver, em entrevista a Sinda Gregory.¹


ENCONTRAR UM POETA é um acontecimento tão raro quanto descobrir uma mina de diamantes. Não sei distinguir um diamante de uma ágata ou ametista, e possivelmente não reconheceria uma pedra caída de Vênus no meu quintal. Gosto de pedras coloridas e todas me parecem belas.

Mas sei reconhecer um bom poema. Sei de sua raridade, de seu desapego, e, quando encontro um, é como se descobrisse uma lasca de estrela à flor da terra. Porque quase tudo no mundo virou coisa. Não há mais espaço para contemplação, para o esforço da ruminação, da busca do sentido da vida e nós dentro dela.

Vivemos um tempo em que as inquietações e indagações em torno da existência foram substituídas e esgotadas em anúncios publicitários. Frases curtas, diretas, com objetivos definidos, concretos, e resultados imediatos. Tudo é mercado, tudo é venal e previsível.

Então, quando leio um poeta de verdade, esse estranho animal que já não encontra lugar na floresta, é um evento de pura graça. Sinto uma grande emoção. É o que acontece por esses dias quando leio, com profunda gratidão, a antologia Esta vida - poemas escolhidos, do poeta e contista americano Raymond Carver (1938 - 1988). A seleção e a tradução são de Cide Piquet a partir dos livros Fogos (1983), Onde a água se junta a outra água (1985), Ultramar (1986) e Um novo caminho para a queda d'água, livro póstumo de 1989.²

Poeta, na minha visão, é quem garimpa pontos de luz no escuro fundo de mina do cotidiano. Esse é o artesão da palavra e o vivente espiritualizado, que tem os pés no chão e a cabeça aberta aos mistérios do universo. Universo que todo pode estar contido num abraço, num grão de pólen, num córrego, numa joaninha como numa estrela.

É o caso de Carver, de quem só tinha lido alguns contos do livro 68 Contos, lançado pela Companhia das Letras em 2010.³ Considerado um dos grandes contistas do século XX, comparado a Anton Tchekhov, impressiona a desenvoltura do escritor em ambos os gêneros.

De origem pobre, teve diversos trabalhos (limpou banheiros, serviu mesas, abasteceu carros, vendeu livros de casa em casa). Mudou-se várias vezes de endereço com a família. Desde muito jovem cultivou a escrita. Seu esforço foi bem sucedido. Recebeu bolsas literárias, atuou como palestrante convidado na Universidade de Santa Bárbara, Califórnia.

Obteve reconhecimento dentro e fora dos Estados Unidos. Teve problemas com o alcoolismo, o qual abandonou. Morreu de câncer de pulmão aos 50 anos e seus últimos poemas tratam da doença e do fim próximo com notável lucidez.

Carver enfrenta a escrita com humildade, sabe que quase sempre saímos perdendo do enfrentamento e que o contrário disso é a exceção, é o poema. Seus temas são simples, fazem parte da vida de qualquer um, o que muda é o enfoque, e o resultado é sempre iluminador. Não será fora de lugar dizer que Raymond Carver é um poeta lírico trabalhando com os dois pés na realidade. Um desiludido que ainda ousa iludir-se (sensibilizar-se), à maneira transcendente de Carlos Drummond de Andrade.

Li os textos em inglês e a tradução e, no todo, o resultado me pareceu muito bom. Sem grandes invenções, torcicolos de estilo e sem a veleidade de fazer uma nova obra a partir do original, o tradutor consegue entregar na língua de chegada o sentido e o sentimento do texto na língua de partida. A tradução, neste caso, consegue envolver o jeito de dizer do autor, o que nem sempre se alcança em se tratando de poemas.

Ouçamos a voz humana, a voz ancestral e fundadora da poesia, na obra essencial de Raymond Carver. 


Fragmento final

E você teve o que queria
desta vida, apesar de tudo?
Tive.
E o que você queria?
Dizer que fui amado, me sentir
amado sobre a terra. 4

__________ 
1, 2 e 4 - Esta vida - poemas escolhidos. Raymond Carver. Seleção e tradução de Cide Piquet. Edição bilíngue. Editora 34. São Paulo, 2017.

3 - 68 Contos de Raymond Carver. Tradução de Rubens Figueiredo. Companhia das Letras, São Paulo, 2010.


sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Para um álbum do futuro

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

COMO FOTÓGRAFO gosto de registrar as coisas da natureza. Flores, árvores, nuvens, rios, estradas de chão, montanhas, bichos: borboletas, passarinhos et alii. Fotografar é um caso antigo na minha vida. Só não é tão antigo como escrever. 

Não faço retratos. Deixo isso para Stefan Rosenbauer e Diane Arbus, mestres do ofício.
 
Olhando minhas imagens, percebo que parte dos ambientes que fotografei no passado se perdeu. Outra está a caminho da extinção. Assim como as pessoas que, eventualmente, aparecem nas imagens. 

As intervenções na natureza têm sido constantes e violentas, parece que nada pode detê-las. Em países onde a vida vale tão pouco, como no Brasil, a natureza nada significa.
 
Por mais que se fale em ecologia, preservação do meio ambiente, desenvolvimento sustentável e coisa e tal, a destruição ocorre modo contínuo em grande velocidade. Um exemplo: note-se o que acontece nas regiões de Gramado e Canela, que acompanho há mais de 40 anos. A explosão imobiliária transformou as duas cidadezinhas, substituindo as velhas casas, as flores e espaços verdes por prédios de concreto e ruas repletas de veículos.

O que havia de matas, pinheiros, variada fauna, córregos limpos e que se perdeu é incalculável. O turismo intenso modificou profundamente, para pior, a paisagem. Sequer construíram um belvedere aprazível entre elas para apreciar com calma as montanhas e o Vale do Quilombo.
 
A obsessão pela imagem é uma tentativa de reter um pouco do mundo que desaparece todos os dias. Fotos são recortes de um tempo e de um espaço que rumam rapidamente para o esquecimento. 
 
É preciso interromper ou pelo menos diminuir este processo. Do contrário, o que vai sobrar?

As próximas gerações viverão num ambiente no qual o mundo natural só existirá em velhas fotografias. Os fotógrafos da natureza não terão mais o que fazer.
 

sábado, 11 de novembro de 2017

O galo cego

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 
 
DO ESCRITÓRIO, altas horas, ele vai pra cozinha. No borralho do fogão a lenha restos de brasa entre cinzas. Reanima o fogo, esquenta água na chaleira.

Qual o tempo da chaleira? Vem de mão em mão, noite após noite, insônia após insônia, parto após parto (como o dele), desde o início do século XX.

Tem ternura pelo bule esmaltado que carrega uma andorinha azul no dorso branco amarelado. No movimento da andorinha em direção ao céu, esquece por um momento o turvo presente. Sente que está envelhecendo entre quinquilharias.

Ficou cego no outono. Depois visão voltou. A madrugada é longa e fria. Os retratos observam sua agonia enquanto arrasta a manta pelos corredores da casa. Agonia de bicho vivo que não se entrega.

Não tem escada pra fugir do alçapão do tempo. Tem a companhia do galo cego que mantém, por pena, no extinto galinheiro dos avós. Um sobrevivente como ele. Volta ao escritório.

Os fantasmas conversam sem cerimônia no interior dos retratos. Ele agoniza enquanto bebe café e escreve.

O galo cego, no canto do poleiro, escuta a chuva.
 

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

O som das asas da borboleta

Jorge Finatto

photo: jfinatto

 
PROCURO UM LUGAR de silêncio para apascentar a solidão.

Um lugar na montanha, bom de estar com um chapéu velho, um capote e um livro. 
 
Um lugar pra domesticar o extravio.

Longe de tudo, perto de todos.

Habitado por pássaros,  flores e um córrego.

Um lugar onde o único rumor do mundo seja o som das asas da borboleta.
 

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

É preciso recomeçar tudo

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

É preciso recomeçar tudo
traçar o novo amanhecer
nas ruas da cidade

é preciso enterrar os mortos
varrer os destroços
abrir as portas para o sol
fazer seu trabalho

_______

Poema do livro O Fazedor de Auroras. Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
 

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Cais

Jorge Finatto
 
photo: j.finatto
 
 
Tem dias que saímos
com o corpo nu
para alojá-lo na primeira copa de árvore
e chorar longe dos homens

dias em que os desejos
até os mais secretos
sucumbem apagados
na penumbra

tempo de total privação
da carne e do sonho
tardes em silêncio reveladas
intervalo entre dois mundos

olhamos o céu
no quadrado da janela
esperando ver a face de Deus
procuramos Deus
no íntimo da alma e das coisas

 
precisamos repousar no colo de Deus
sentir suas mãos nos olhos
para amparar a lágrima quente
que por ali verte

tem dias que estranhamos
o próprio olhar
que amanheceu mais seco
não reconhecemos a rua
onde tantas vezes inventamos o amor
na sombra dos cinamomos

as melhores viagens
ficaram sonhando no cais
enquanto navios partiam
repletos de homens decididos
em busca de cidades felizes

onde andará o menino
que nos visitava nos dias
em que tudo em volta
parecia desabar?

em que gare deserta
se perdeu o guarda-chuva melancólico
com que meu avô ia à cidade
buscar a porção diária de pão
esperança
e jornal?

tem manhãs em que apesar do sol
não habitamos o claro sentido
de existir
mal percebemos a luz
acalentando o corpo

manhãs em que o carteiro
extravia a carta que irá nos salvar
a notícia tão esperada
que nos revelará
um mundo desconhecido
onde pandorgas falam
e o arco-íris é uma escada
que nos retira do poço

não compreendemos
as mãos cansadas
a boca amarga
com que damos bom-dia aos vizinhos
cumprimentamos os superiores

tem dias que o isolamento
é tão assombroso
que sentimos tristeza em tudo
principalmente na alegria ingênua
das velhas fotografias
uma dor inevitável
diante dos sonhos da infância

dormimos em quartos de aluguel
projetamos ataúdes de aluguel
as dívidas invadem a porta
os poros

o amanhã ficou torto
na cordilheira dos dias
sem luz

a cidade parou no escuro
sufocou nossos melhores anos
inundou o rio
com seus maus óleos
seu excremento

não merece um verso
sequer uma notícia fugidia
em página de jornal

talvez careça uma bomba
um terremoto
talvez uma flor
povoando o asfalto

estamos um pouco mais tristes
e calados
(um pouso só)

trazemos um gosto de sol
entre os dentes
um resíduo de primavera
na palma da mão
uma promessa de encontro
nos olhos

 __________________

Do livro O Fazedor de Auroras, Jorge A. Finatto, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
photo: Cais de Porto Alegre

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Drummond, afeto que não se apaga

Jorge Finatto
 
Drummond. autor: Stefan Rosenbauer. O Globo, 17/12/2016

E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.
Carlos Drummond de Andrade no poema O Sobrevivente.
 

O JOVEM LEITOR afeiçoou-se ao poeta. Compartilhou com ele, mais do que palavras, a viva vida que elas expressavam. E como diziam coisas as palavras do bardo itabirano!
 
Havia entre poeta e leitor uma secreta cumplicidade. Um andar juntos pelo mundo. Uma troca de confidências, alegrias, queixas, protestos, malquereres, desertos, amores e esperanças. O invisível amigo percorria com o jovem os duros caminhos do mundo.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) será sempre o lúcido, o lírico, justo enlace razão-emoção, construtor de versos indeléveis na língua universal da poesia. Enquanto houver livros e leitores, Carlos Drummond será sinônimo de altíssima poesia e claro pensamento.

O ser-no-mundo, às vezes cambaio, às vezes indescritivelmente só, mas sempre solidário em sua humana caminhada.

O poeta não se esquivava e respondia as cartas que lhe chegavam todos os dias. Generoso, sabia colocar-se, não acima, mas ao lado do leitor que o procurava ávido por um contato, mínimo que fosse. Respondia com incomum e delicada atenção as missivas.

Quando escrevia na resposta o nome do jovem missivista, manuscrito com tinta azul na folha branca, retirava-o do anonimato, reconhecia-lhe a existência, tratava-o como um semelhante. Sábio e sensível ao outro, ele sabia que o poema só existe quando desvelado aos olhos do cúmplice leitor. As duas cartas que dele recebi são, para mim, verdadeiras relíquias literárias e sentimentais emolduradas na parede do escritório.

Drummond fez um imenso bem à minha alma, aos meus jovens dias e aos dias que vieram depois. Neste 31 de outubro, em que se comemoram seus 115 anos de vida (vida estendida no testamento da palavra), renovo a emoção de abraçá-lo com o coração. Invisível afeto que o tempo não apaga.

"No mar estava escrita uma cidade". verso do poeta na escultura da Av. Atlântica, Rio de Janeiro
 

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Sumiço

Jorge Finatto
 
nuvens: photo: jfinatto
 

NÃO SEI COMO nem por que a janela onde apareciam os amigos do blog (seguidores) desapareceu da página. Não me tomem por ingrato, o sumiço aconteceu simplesmente e fiquei órfão daqueles raros leitores.  
 
Assim como a janela fechou-se sem mais aquela, espero que volte a abrir e que volte em breve. Não como aqueles maridos que um dia saem de casa dizendo que vão comprar cigarro no boteco da esquina e retornam ao lar 25 anos depois como se fosse ontem. Aí não dá. Se alguém tiver ideia do que fazer, mande um e-mail ou comentário.*

________

* Em 7 de novembro (anteontem) a janela voltou.
 

sábado, 28 de outubro de 2017

Un amore

Jorge Finatto

photo: jfinatto
           
             La speranza di pure rivederti                             
             m'abbandonava.                                                          
                                    Eugenio Montale


No mais remoto deserto
- o sal e o labirinto do tempo
amadureço o poema

E parece que para encontrar-te
tinha de perder-te um dia

Colho no caminho as pétalas
da rosa que não te dei
e distraída desfolhaste

 ________

Poema do livro O Fazedor de Auroras, JFinatto, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Tradução livre do verso de Montale: A esperança de ver você de novo me abandonava.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Elegia 1975

Jorge Finatto

photo: j.finatto
 

O VENTO não traz
notícias de longe

todos foram dormir
depois do vinho
 
só nós permanecemos

incomunicáveis
debaixo das estrelas
e do frio

um que outro fantasma passa
fugitivo na calçada
não perguntamos pela vida
passada ou futura

habitamos cada momento
com olhos de prisioneiros violentados

escutamos o silêncio que vem do rio


a fome imensa de liberdade
que nos anima e nos faz fortes
na tempestade que nos enlaça
nos joga contra a parede

nosso rosto parece
ao de toda gente
mas trazemos
segredos inviolados
noites de lobos feridos

olhamos a cidade morta
nenhum anjo nos acalanta


estamos vivos
e nunca doeu tanto

_______________

Do livro Claridade, coedição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.
 

domingo, 22 de outubro de 2017

Da minha janela

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

CADA UM VÊ o mundo da sua janela. A mirada particular de cada pessoa. O jeito de enxergar as coisas.
 
Eu, por exemplo, gosto demais de uma taça de café com leite e pão com manteiga. E me encanta andar na rua quando chove.

Infelizmente, já não tenho idade para subir e caminhar sobre telhados. Nem vou sair voando pendurado num guarda-chuva pelas ruas desertas de Passo dos Ausentes. E morro de saudades dos doces que minha avó fazia nos dias de frio.

Está chovendo e gelado aqui na montanha, apesar da primavera. Gosto de dias assim.
 
Agora, não tenho mais quem faça doces. Mas as tardes de chuva continuam cheirando a arroz doce, canela e casquinha de laranja dentro de mim.
 
A memória é uma biblioteca onde se guardam as quinquilharias do tempo. Às vezes, me refugio nela e me ponho a perambular nessas cálidas páginas do passado.

Sim, raro leitor, é bom parar um pouco, olhar e pensar na vida. Abrir a janela e sentir como um menino. Mas nunca se trancar no casarão desabitado do passado. 
 

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Pequenos mistérios

Jorge Finatto

Entre pétalas, texto de Rainer Maria Rilke* photo: jfinatto
 

COSTUMO PÔR PÉTALAS entre páginas de livros e cadernos de anotações. Acho bonito abrir tempos depois e lá encontrá-las com suas cores e nervuras à flor da pele. Elas parecem carregar a memória de um tempo, de um jardim, de uma casa, de uma sensibilidade.
 
Em álbuns de fotografia também fica delicado. Era comum naqueles álbuns de recordações das moças de antigamente. Recolho as pétalas caídas das roseiras aqui de casa. E folhas do outono também.
 
Os livros, fisicamente, pertencem ao mundo vegetal na origem. Com o conteúdo das palavras transformam-se em objetos espirituais. 
 
O mundo está cheio de mistérios. Será que ainda se usam folhas e pétalas entre páginas? Será que alguém ainda cultiva roseiras no quintal? Será que livros têm lugar nas casas? Será que ainda existem moças sonhadoras e álbuns de recordações?

_________ 

*Cartas do poeta sobre a vida. Rainer Maria Rilke. Organização de Ulrich Baer. Tradução de Milton Camargo Mota. Livraria Martins Fontes Editora Ltda. São Paulo, 2007.
 
O epitáfio de Rilke:
https://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/search?q=O+epit%C3%A1fio+de+Rilke
 

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Um certo Terêncio Horto

Jorge Finatto

O escritor Terêncio Horto.* Autor: André Dahmer


O ESCRITOR DESCONHECIDO, frustrado, amargurado e massacrado pela indiferença em torno de seu trabalho certamente encontrará um aliado na figura incansável e batalhadora de Terêncio Horto. Ele é a prova viva de que um autor não deve desistir jamais da luta diante da folha em branco e do pouco caso de editores e leitores.
 
Nós, esforçadas criaturas que escrevem em solitários cubículos, formamos uma invisível e numerosa família. Com poucas exceções, vivemos confinados na caverna do anonimato. Mas somos teimosos, nada de desespero. Pelejamos mesmo nas piores condições. A dura lida nos constrói.

Olhemos o exemplo do irmão Terêncio. Lá na sua clausura, qual isolado monge sentado diante da velha máquina de datilografia, ele não se entrega ao fracasso; luta de sol a sol, nuvem a nuvem, quadrinho após quadrinho, para dar ao mundo os frutos suculentos do duro ofício.

O Senhor Horto e seu amigo imaginário. Autor: André Dahmer
 
Terêncio Horto é desses assinalados pelas musas e pela tragédia de escolher a escrita num ambiente grosseiro e de poucas luzes como o nosso. Alcançou algum reconhecimento, mas não perdeu a rebeldia. Faz parte de uma geração de escritores em vias de extinção. A esmagadora maioria passou a vida sem ser notada pelos leitores, pela crítica, pela mídia e pelos vizinhos dos prédios onde moram. Nunca receberão jabutis, quatis, sagüis, sambaquis e outros importantes galardões literários nacionais. Entanto, lutam a eterna luta das páginas fadadas ao fundo sombrio de injustas gavetas. 
 
Não apenas escreve bem o Senhor Horto como possui notável poder de observação. A sua visão de mundo está impregnada do caos da vida com seus intervalos (raros) de poesia e humanismo. Os temas são os mais diversos, desde remotas (e dolorosas) memórias de infância até intrincadas questões de fundo filosófico e outras, não menos tormentosas, inerentes às relações humanas. Nada escapa de sua pluma corajosa e vertical: internet, brigas de família, humilhações, desilusões, sexo, cultura, cinismo, encontros marcantes e alguns nem tanto, amizade, amor, cumplicidade, arte, literatura.

O Senhor Horto. Autor: André Dahmer
 
O Senhor Horto não poupa a si nem ao restante da humanidade de sua ironia e de seu humor corrosivo. Porém, sem perder de vista certa dose de ternura e empatia diante da tragicomédia da existência.

O escritor Horto. Autor: André Dahmer
 
Li com prazer e sentimento de vingança este Vida e Obra de Terêncio Horto, e me reconheci em muitas de suas páginas. O livro já faz parte do meu manual de sobrevivência na selva literária. De forma direta injeta ar fresco e claridade no ambiente de boçalidade do mundo das letras e das artes, além de aliviar a barra pesadíssima do cotidiano. Só resta agradecer ao quadrinista e escritor André Dahmer por nos ter revelado esse grande autor e pensador brasileiro. Com especial destaque, também, para as ótimas ilustrações.

O escritor Horto. Autor: André Dahmer
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*Vida e obra de Terêncio Horto. André Dahmer. Ilustrações do autor. Editora Schwarcz S.A., São Paulo, 2014.
 

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Numa exposição de orquídeas

Jorge Finatto

orquídeas no Shopping Bourbon Country, P. Alegre, set. 2017. photo: jfinatto

 
QUANDO ALGUÉM CANSADO e triste diz que o mundo está no fim, eu acho que sim. Está difícil habitar o planeta e não sentir que algo terrível se aproxima e ganha forma a cada dia. Ninguém agüenta mais o inferno vigente. O sentido humano é exterminado a cada momento.
 
O Brasil é a clara evidência de que não há caminhos, só suspiros. 

idem

A esperança de que algo virá, algo violento que dará um basta à maldade que hoje governa a Terra em todos os quadrantes, é o que nos anima. O livro bíblico do Apocalipse não fala que o atual estado de coisas será abençoado, mas destruído. Essa transformação, nunca antes vista, virá de Deus.
 
E aqueles que agora se vangloriam e lambuzam na vaidade, no poder e na riqueza imunda serão calcinados e varridos como poeira. Um novo mundo nascerá para as pessoas que façam por merecer, está escrito. Não sei se terei uma chance no novo sistema. Talvez sim, talvez não, quem sabe? Mas aguardo com ansiedade a nova ordem. Difícil é esperar.
 
idem
 
Enquanto isso, caminho na exposição de orquídeas. Um prelúdio, assim espero, da vita nuova que será, expulsando todo sofrimento e dando uma real oportunidade à vida. Para todos.
 
idem
 

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

O amor é o melhor remédio

Jorge Finatto

Imagem mais antiga (séc. IV) do Apóstolo Paulo, descoberta em Roma,
segundo o Vaticano
 
 
Se eu falar em línguas de homens e de anjos, mas não tiver amor, sou um gongo que ressoa ou um címbalo que retine. E se eu tiver o dom de profecia e entender todos os segredos sagrados e todo o conhecimento, e se eu tiver toda a fé, a ponto de mover montanhas, mas não tiver amor, nada sou. E se eu der todos os meus bens para alimentar outros, e se eu entregar o meu corpo para me gabar, mas não tiver amor, de nada me adianta.

Paulo, A Primeira Carta aos Coríntios, 1 Coríntios 13:3, Bíblia* 
 

O MELHOR REMÉDIO para os sofrimentos são os bons sentimentos que carregamos na alma. As boas recordações e os afetos nos valem nos dias difíceis. Nenhuma arma é tão poderosa quanto se sentir amado e amar.
 
Saber que somos amados, que para alguém nossa existência é importante, abre uma manhã de sol na escuridão.
 
A casa do abraço. Esse reino secreto nos fortalece no infortúnio e no abandono. Amor que justifica nossa existência.

Amor pela tribo toda, amor estendido, que possibilita a vida em sociedade. É óbvio como um elefante no meio da sala. Mas a gente custa a enxergar.
 
Ninguém falou tão bem sobre essa realidade como Paulo em sua Primeira Carta aos Coríntios. Maravilha em poucas linhas.

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*Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, 2015.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

O Landgrave

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

A FALA PRINCIPIAL que lhe dirijo, ó, impossível leitor.

Eu, o Landgrave, me curvo diante da vossa alta ausência. Vivo no interior do ermo, habito as brumas dos Campos de Cima do Esquecimento.

Me esqueço no esconso do mundo. Meu revólver é o lápis e o calepino.

Vento de julho quase me derruba.

As fraquezas do corpo. Nunca se sabe o que vem a contrapeito. Travessias a que os fados nos obrigam.

O sonho muito sonhado tinha nome: Cléria, Cléria dos meus suspiros. Invernos ao relento. A moça de papel e tinta, musa em solidão concebida, menos tida que havida. Só a conheci de vista, na janela da mansarda, quando lá embaixo ela passava. Eu poeta tímido e sufocado.

Sentimentos que teço no abismo das horas. Dores que não têm conta.

O fosso profundo do fundo de cada um. Meu Deus.

Foi assim.

Os vazios dias, minhas tardes distantes, à beira do penedo. Hoje eu vejo tudo aqui de cima, na mansarda. Recolhido na grossa e comprida manta, atrás dos óculos de fundo de garrafa. Não vivo mais na borda de penhascos. Saltei para dentro da lira. O consolo possível.

Esta página escrita no sótão, arrostando vento e solidão.

Fugazes as vaidades do mundo são. Mais vale um poema que um tostão. O frio glacial dessas alturas inóspitas.

Fui resgatado do evento proceloso pela mão de salvadoras prosopopeias. Eis-me de ponta cabeça no perau do texto.

São caminhos que se andam. Depois se aprende, depois se sofre, depois se esquece. A vida, ai de mim, ai de nós.

O que não se tem se inventa. O mundo não tem bom coração. O delicado vive por teimoso e obstinado.

A humanidade enaltece a ruína, mata o humano. O que fizeram com esse texto as escuridões do mundo!

Cléria, sim, Cléria do capucho branco e do casaco azul claro. Cléria dos meus tormentos. Dos meus espantos e secretas ternuras. A que não se deixou amar. A desaparecida musa do vestido rosa com a fita lilás. Entrou e saiu do meu sonho sem saber.

Vivia lá no seu castelo, sem dar pela minha existência de bardo de arrabalde.

Eu o que quero agora é a solidão dos ventos gelados.

Meu olhar atravessando as névoas eternas.

Eu, o provedor das horas finitas, senhor de nadas, o catador de conchas de silêncio nos ares da álgida montanha.

Ela se foi pela estrada de ferro, sem dizer adeus.

Nas minhas saudades, ouço o ranger do velho trem saindo da estação.

A sintaxe é território que se conquista na dureza de batalhas cruentas. Palavras são coisas que criam asas e depois se lançam.

Agora sou o navegante. Viajor do tempo. Astrônomo de dicionários. O tal que restou com a bicicleta retorcida nas pedras.

 O sobrevivente, ridículo bardo interiorano.

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Texto revisto, publicado antes em 13 de outubro de 2010.
 

domingo, 24 de setembro de 2017

Beija-flor, a persistência da primavera

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto


O PEQUENO BEIJA-FLOR cumpre o ofício de cortejar a flor. No caso da foto, a flor amarela do ipê. Vai em busca do sagrado néctar, o seu alimento. É um trabalho árduo para um ser tão pequenino. Também é conhecido por colibri, cuitelo, chupa-flor, pica-flor, chupa-mel, binga, guanambi, segundo diz o Wikipédia.
 
A viagem da breve ave é uma odisseia no jardim. Faz 20 anos que os beija-flores habitam meu quintal fazendo ninhos nas árvores. Provavelmente já existiam neste ambiente muito antes de eu chegar aqui.
 
As flores em abundância durante o ano, entre elas os sininhos, são fonte diária de alimento para eles. São seres encantadores: na cor, no voo, no canto de algumas espécies. As asinhas batem sem parar, gastando muita energia que precisa ser reposta durante o dia. A grande velocidade do bate-bate de asas faz com que possam ficar parados no ar e até mesmo voar de ré. Mágica estripulia.
 
O que me causa admiração nos beija-flores é a persistência destes minúsculos seres em sua luta diária pela sobrevivência. Porque o ambiente está cada vez mais hostil para eles: poucas casas, poucos quintais, poucas flores. Resistem bravamente.

Vida de pássaro é a coisa mais complicada nestes tristes tempos. Por isso há várias espécies em risco de extinção, beija-flores inclusive. O próprio homem está em risco de extinção como sabemos. Dizem os sábios que "evoluímos" ao longo dos tempos. Evoluímos, evoluímos, e demos nessa enorme enrascada. Um buraco trevoso. 
 
Apesar de tudo, a primavera chegou. Enquanto eu estiver por aqui, o meu jardim vai ser a casa dos beija-flores e outros passarinhos. Não faço nisso nenhum favor. Apenas respeito essa gente miúda que espalha beleza no quintal da minha alma.
 

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Rua sem sol

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto
 
Os antepassados
negros e italianos
rasgaram o oceano
para que eu estivesse

aqui no futuro
olhando o fim de tarde
no horizonte dos muros

não possuo do imigrante branco
a esperança eldorada
nem a saudade triste do preto
em pranto mastigada

sou apenas um homem mestiço
olhando o movimento dos barcos

agora que a noite cai
sobre a cidade
e me surpreendo sonhando
com a fuga
por uma rua sem sol

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
 

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Conversa com meu anjo da guarda

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

 
DIZIAM OS ANTIGOS que cada pessoa tem o seu anjo da guarda. Anjo bondoso e santo que vela o sono, releva os erros, protege dos perigos, aconselha, sabe perdoar. Anjo zeloso e guardador que anima o coração desolado e ajuda a viver.

Não sei se os anjos ainda estão por aqui, tal o estado em que os homens deixaram o mundo, especialmente o Brasil. Se pudesse fazer um pedido, pedia ao meu anjo que inventasse depressa a máquina de desmorrer.

Sim, para acabar de vez com o problema do desnascimento que todos os homens e mulheres carregam dentro de si e dele não conseguem se livrar. Porque desnascer, ou deixar de caminhar sob o sol, é coisa das mais tristes, sem nenhum sentido, um desperdício enorme de tempo, trabalho, sonhos e sentimentos.

Uma vez expulso o desnascer de nossas vidas, com a eternidade toda pela frente, quanta coisa bonita havíamos de fazer e conhecer! Teríamos os dias necessários para consertar o que ficou torto, o que não deu certo.

Vou aproveitar e construir muitos barcos de papel pra soltar no Arroio Tega, nas manhãs da eternidade. Passearei com meu guarda-chuva nas ruas molhadas e vazias de Passo dos Ausentes. Subirei em perna de pau na Noite de São João, olharei a Lua da janela do meu quarto de menino, pescarei estrelas com o chapéu.

Descobrirei o nome de todas as flores e árvores. Pedirei, também, ao meu anjo protetor, que traga de volta, sem mais tardança, os seres amados que já partiram. Sim, estou cansado de viver longe deles, sinto muitas saudades.

Quero todos os ausentes por perto outra vez. Principalmente nessas solitárias noites tão frias, tão povoadas de névoa e memória. Os invisíveis habitam a solidão da casa.

 É preciso urgentemente inventar a máquina de desmorrer.
 
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Texto revisto, publicado, antes, em 28, maio, 2014