quinta-feira, 24 de novembro de 2016

A tristeza de Porto Alegre

Jorge Finatto

Cais, vista parcial, Porto Alegre. photo: Lorenzo Finatto
 
Eu vou escrever uma coisa triste. Quero falar de Porto Alegre, cidade do meu coração. Do medo que sinto em andar por suas ruas. Da saudade que tenho do tempo em que isto era possível. Do sentimento de isolamento que nos invade com o cerco da violência.

Difícil acreditar que Porto Alegre é, hoje, uma das capitais mais perigosas do país. Pouco saio de casa temendo assaltos, sequestros, tiros, que ocorrem nas calçadas,  nos semáforos, nos estacionamentos de shoppings, em toda parte.

É doloroso não poder caminhar como antes por suas ruas cobertas pelas copas de tantas árvores. E o que dizer de seu rio, de suas praças e parques, do cais, dos barcos e navios, de seu lindo pôr-do-sol, de sua gente acolhedora? Está tudo escondido, hibernando à espera de melhores dias.
 
Segundo dados oficiais, o número de latrocínios (roubos com morte) aumentou este ano, chegando, entre janeiro e junho, a 23 vítimas em Porto Alegre e 89 vítimas no Estado. Mata-se por um celular, um par de tênis, um relógio velho, um carro, um pacote de supermercado, muitas vezes por nada, e sem qualquer reação das vítimas. No mesmo período, os homicídios dolosos saltaram para 351 em Porto Alegre e 1.276 no Estado. Isto sem contar outros crimes.*
 
O Estado não cumpriu a obrigação de construir novas casas prisionais diante do incremento da criminalidade. A superlotação dos presídios impede o atendimento individualizado aos presos, a começar pelo indispensável acompanhamento psiquiátrico. As condições desumanas dos estabelecimentos penais e o despreparo da sociedade em receber o egresso de volta são responsáveis pelo fenômeno da reincidência criminal, que ultrapassa os 70%. Inexiste ressocialização dos apenados.

O que as pessoas não se dão conta, parece, é que tudo de horrível que acontece no interior dos presídios retorna para as ruas.

Nos anos em que atuei na execução criminal, empenhei-me junto com colegas juízes e entidades civis pela humanização dessas casas de mortos (no dizer de Dostoievski). Trabalhamos com projetos de melhoria das condições carcerárias, buscando inserção social através do trabalho, do estudo, de encontros, palestras, livros, bem como pelo envolvimento da comunidade e das famílias dos presos nas atividades de ressocialização. Os resultados foram bons, confirmando que não existe execução criminal que dê frutos sem a participação da comunidade. A Lei de Execução Penal é sábia nesse sentido.

Pois bem, Porto Alegre possui um dos piores estabelecimentos penais do Brasil, se não for o pior, o Presídio Central. É o fundo do poço.
 
Não se chegou a este estado de coisas, portanto, por acaso. São décadas de omissão e indiferença do Estado e da sociedade. Não se combate a criminalidade sem investir, lá atrás, na concretização de direitos elementares como habitação, creches, escolas, saúde, centros comunitários e de convivência, oportunidades de trabalho, etc.

Não, a pobreza não é fábrica de criminosos. A imensa maioria da população não vai para o crime. Mas o que se vive no Brasil é uma situação de indigência social e abandono. O mundo do crime sabe cooptar seus integrantes em todos as classes, inclusive entre as pessoas mais vulneráveis, em situação de alto risco e desespero.
 
Os maus governantes devem estar orgulhosos do trabalho que fizeram, assim como aqueles que se beneficiaram deste iníquo sistema de coisas. E nós, cidadãos, temos nossa parcela de responsabilidade por escolher quem escolhemos. E por cultuarmos ferozmente a filosofia do eu-sozinho, esquecendo-nos do nós.
 
O dinheiro que falta para a realização do bem comum e para uma vida mais digna  está depositado nos bolsos sequiosos e insaciáveis dos corruptos, conforme estampado nos noticiários todos os dias.
 
O colapso de Porto Alegre não é um caso isolado, é só um triste recorte do Brasil. Esta é a herança que estamos recebendo e passando adiante, construída pelas pessoas da minha geração e das que nos antecederam.  Muitos de nós  achavam que a democracia era, por si só, a panaceia para todos os males, quando na verdade é apenas o começo do caminho a ser percorrido, e só Deus sabe a que preço.
 
Estamos atravessando um dos momentos mais agônicos da história brasileira. A falta de ética na vida pública nunca foi tão evidente. Ninguém aguenta mais tamanha desfaçatez. Precisamos urgentemente de mulheres e homens que reinventem o país com base no sentimento de solidariedade social. Um novo tempo de respeito ao próximo e de intolerância a todas as formas de corrupção é a nossa esperança.
 
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*Dados divulgados pela Secretaria da Segurança Pública do RS. Informação atualizada no blog em 3/12/2016.

http://www.ssp.rs.gov.br/?model=conteudo&menu=348

Os números publicados anteriormente a 3/12/16, nesta matéria, continham erro.