terça-feira, 29 de março de 2016

Como habitar o dia sem freqüentar a morte (I)

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto

Que a escrita seja sempre um ato de vida e esperança. Clara luz de uma estrela atravessando um tempo mau.

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Em vez de proibir os beijos com batom (no túmulo de Oscar Wilde, Cemitério de Père-Lachaise, Paris), deviam acolher esses beijos, recebê-los como uma dádiva, como luminosa manifestação de carinho a quem, em vida, foi condenado criminalmente por amar.

Ao invés de preocupar-se em proteger a integridade fria do mausoléu, deviam dar abrigo a esses lábios amorosos, dar-lhes o aconchego que bem merecem.
Os cálidos beijos sobre a dura pedra teciam o monumento imaterial a ser preservado acima de tudo, em tempos de pouco afeto e escassa demonstração de calor humano.* 
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Os pássaros tratam de viver, ao contrário de nós, ocupados demais com a morte.
Eu bem que tentei olhar a vida como eles, mas ainda não consegui. Talvez porque me faltem asas.
 
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Aprendi com os pássaros que eles são felizes ao natural. Vivem com o que têm e sentem-se bem assim. Não querem mais do que a natureza lhes oferece. A vida é breve. Aproveitam o dom de estar vivos. 
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A volúpia de publicar muitos livros para ser reconhecido, às vezes, faz um autor se perder. Ser bom de venda e de mídia não significa ser bom escritor, embora faça bem para a vaidade, para a vida social e para o bolso. 

Mas cada um é cada qual. Ninguém deposita flores no monumento ao escritor desconhecido.
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Eu sou antes de tudo um leitor. Espero que os escritores fora de comércio continuem seu trabalho. Não desistam, resistam, sobrevivam. O resto é o que vem depois, mas isso ninguém sabe.
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*Oscar Wilde e o beijo proibido:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/06/oscar-wilde-e-o-beijo-proibido.html

sábado, 26 de março de 2016

Ressurreição pra todos

Jorge Finatto
 
quaresmeira em flor. photo: jfinatto

Ninguém podia imaginar que, passada a ditadura, outra escuridão nos esperava - profunda, espessa e dolorosa - essa que estamos atravessando. Mas vai passar.
 
A claridade há de expulsar as trevas da corrupção, do cinismo, do desamor às pessoas, da luta rasteira pelo poder a qualquer preço.

Não é mais possível continuar desse jeito.
 
As pessoas de bem - de todas as ideologias,  partidos,  grupos e credos - haverão de colocar o Brasil acima dos interesses mesquinhos, acima da violência, acima da desesperança e do desastre.
 
A luz dos espíritos esclarecidos, o diálogo, a capacidade de reconhecer os próprios erros e de se colocar no lugar do outro acabarão por vencer os oráculos da morte.
 
Nesta Páscoa, e nos dias que virão, Feliz Ressurreição a todos!
 

domingo, 20 de março de 2016

A lágrima

Jorge Finatto

photo: jfinatto

As percas. O irremediável na vida da pessoa. Os olhos pretos, pretos. Acesos. Os negros cabelos caíam-lhe nos ombros. No então eu habitava o calabouço. Agonia em mim costumada. As esperas.

Ela surgiu um dia no abrigo, as carinhas nossas. Vestia casaco azul-marinho, lenço branco no pescoço. Quando vi aquela iluminação, meu coração saltou saltos. Pensei no vazio de mim: o que, a estrela da minha vida, essa? Nunca esqueço.

A Encantada. Os olhos dela me encontraram. Escolheu a minha frágil escondida criatura. Havia muitos outros habitantes do calabouço aguardando amanhecer. No limbo, esperando a face do milagre. Os esquecidos.

A Encantada me pegou nos braços. O meu filho, disse. Passei a ser o amoroso. Os baldos. Meu coração cavalo cego na alegria. Quem me via, falava: esse tal, o príncipe. O escolhido. A Encantada inaugurou minha vida. A estrela. Eu príncipe. Ela disse: menino agora é meu filho no rigor da lei e pessoa da minha alma. Tive outro menino, disse ela, olhando o esmo. Do meu sangue próprio. Perdi nos prelúdios, tinha quatro anos. As percas. As esfumações.

Cresci com esse invisível irmão. O finado. O sempre lembrado. Às vezes eu conversava com ele. A mãe era sozinha no mundo. A mãe tinha os momentos. As lonjuras.  Carregava o menino morto no regaço do coração. Caminhava no outro mundo com seus desaparecidos. A mãe tinha  segredos guardados. Ninguém entrava ali. Ai de quem.

O meu filho, dizia. A mãe fazia eu dormir no colo, na frente do fogão a lenha, até os seis anos. O príncipe. A mãe levava o filho vivo passear na praça. O mundo conhecesse o amoroso. A solitária da Rua São João e seu menino vivo. Eu tive, depois perdi.  O coração da mãe tinha umas ausências, sustos, sufocos. Um dia estranhei aquele sono esquecido de acordar. Fui no quarto. Ela deitada. O rosto lindo inclinado. Os olhos pretos, pretos, abertos. Havia uma lágrima transparente. Eu me vi dentro daquela lágrima. A boca parecia rir um pouquinho. Tinha eu seis anos. O escolhido.

Peguei na mão da Encantada. Fiquei dois dias sentado no chão ao lado dela, esperando ela retornar. A mão muito fria. A testa que beijei, gelada. A mãe não regressou. Os silêncios. Disse no dentro do fundo do meu coração: vou junto. Aqui não fico mais. A vida não vale, acabou. Odiei ter renascido. O escolhido. Ódio, ódios envenenados senti. Um vizinho, vizinhos, forçaram a porta, sobejaram pela casa. Os espantos. Me tiraram de lá, no forçado. Eu gritei deveras os tristes gritos. Me deixem, me deixem. O pobre, diziam, o pobre príncipe.

Nos retratos a nossa vida em família: a mãe, o sempre lembrado, eu. O príncipe partido. Sobrevivo a mim mesmo. Sou uma ausência afogado na lágrima. O frio, frios dentro em mim.

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Texto publicado em 22 de maio, 2010.

terça-feira, 15 de março de 2016

Jungfraujoch, Top of Europe

Jorge Finatto

Vista do vale em Jungfraujoch, Suíça. photo: jfinatto

Chegar à estação de trem mais alta da Europa, em Jungfraujoch, no cantão de Berna, Suíça central, requer paciência e fé. E uma alma aberta para encontrar esse tipo singular de beleza. Um pouco de jogo de cintura é importante para encarar a subida por estradas de ferro sinuosas e a pique, entre as altas e álgidas montanhas alpinas.

Um velho e bom capote é indispensável. Este item, aliás, não é problema para quem vem de Passo dos Ausentes, como eu, terra de grossos e impermeáveis casacões de lã, tecidos na mais que secular manufatura local. Os tradicionais agasalhos ausentinos são imprescindíveis para enfrentar os furiosos ventos austrais que nos assolam naquela boa terra, assim como as chuvas, as geadas, os nevoeiros e nevascas.

photo: www.swisstravelsystem.com/pt
 
Encasacado e a bordo do vetusto chapéu azul-marinho, saí do hotel e fui até a estação de trem da pacata Interlaken (pouco mais de 5 mil habitantes). São necessários 3 trens para chegar a Jungfraujoch.

Embarquei no primeiro que vai escarpas acima até Lauterbrunnen. Aí pega-se outro que nos leva a Kleine Scheidegg. Por fim, o terceiro comboio se dirige a Jungfraujoch, passo entre as montanhas de Jungfrau e Mönch, onde está a estação de trem do topo da Europa.

Visão a partir de Jungfraujoch. photo: jfinatto

Para subir os 3.454 metros de altitude, é necessário trem de cremalheira, isto é, com roda dentada central para engrenar no trilho dentado no meio dos trilhos, única maneira de vencer a íngreme subida. Do contrário, a composição voltaria para trás ou simplesmente não iria adiante.

Observatório de Sphinx em Jungfraujoch. photo: jfinatto

No meio do caminho, há paradas em locais de ampla visão para fazer fotos. Lá enfim chegando, me aventurei a sair da estação e enfrentar a neve e o gelo escorregadio naquelas alturas. Fazia um frio de 26ºC negativos e ventava. Fiz algumas fotos, em poucos minutos, e retornei para tomar um chocolate quente.

Esperei, retomei o fôlego e saí novamente. Fiquei mais alguns momentos catando imagens, olhando as montanhas a perder de vista, nos quatro cantos, cobertas de níveo chantili. Só não é mais bonito do que os paredões dos Campos de Cima do Esquecimento.

As mãos e o rosto congelados, voltei à estação de onde não mais saí, enovelado dentro do capote ausentino, esperando o trem de retorno. Uma linda moça oriental perguntou se eu queria que ela fizesse uma foto minha diante da janela (onde eu estava sentado) que dá para o vale gelado. Concordei, claro. Por um desses mistérios que nunca entendi, não apareço em fotos nem em retratos (sou invisível talvez). Mas isso também não importa. Importa é a vista do lugar desenhada em finos e inspirados traços por Deus.

Subida a Jungfrau. photo: jfinatto
 

domingo, 13 de março de 2016

O poema

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

De tudo restou o poema
espelho de muitas faces
solitário como um bicho
resfolegando no silêncio
da página
  
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Poema do livro Claridade, Jorge Finatto. Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1983.

segunda-feira, 7 de março de 2016

O casal do Elétrico 28

Jorge Finatto

e-book, editora Assírio & Alvim, Portugal
 
Estou levando livros na bagagem, além de revistas e jornais. Publicações que não existem no Brasil. Há uma estantezinha lilás na mansarda, em Lucerna, onde acomodei, provisoriamente, o material. Mas logo vão ter que entrar na mala e enfrentar o Atlântico, nas asas do grande pássaro metálico, durante 12 horas de voo desde Zurique.
 
Na hora de entrar na mala os livros parecem feitos não de papel mas de pedra. Mas se para mim viajar é caminhar, conhecer, conversar, fotografar, ler jornais e revistas, escutar rádios da cidade e  comprar livros, o que fazer? O que é de gosto regala a vida, diz a sabedoria do povo.
 
Mas o que eu quero dizer é outra coisa. Estava lendo o jornal Expresso, de Portugal, edição de 13 de fevereiro que trouxe de Lisboa (ler jornais velhos é uma das alegrias possíveis nesses tempo terríveis, porque as desgraças que estavam por acontecer ainda não tinham ocorrido).

Refiro-me à notícia do traslado dos restos mortais de Ofélia Queiroz (1900-1991), a eterna namorada de Fernando Pessoa (1888-1935), para o Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, ocorrido no dia 12 de fevereiro.¹

Nesse cemitério o poeta esteve enterrado até 1985, quando o que sobrou de seu corpo foi levado para o Mosteiro dos Jerônimos, onde está ao lado de Camões e Vasco da Gama.

Em frente ao Cemitério dos Prazeres, numa parte alta da cidade, situa-se uma estação do Elétrico 28, bonde que Ofélia e Fernando seguidamente tomavam em seus namoros secretos pela cidade.

Maria da Graça Queiroz, sobrinha-neta de Ofélia, no traslado dos restos mortais
foto: Tiago Miranda

A transferência dos ossos de Ofélia foi obra da Câmara Municipal de Lisboa. Ao que se sabe, Ofelinha (como a chamava carinhosamente Fernando) foi a única namorada do poeta. Namoro de duas pessoas discretas e sensíveis, que tudo fizeram por não tornar pública a relação (essencialmente por decisão dele).

Fernando Pessoa decidiu que não poderia se casar (a sua precária condição financeira de tradutor freelancer não lhe permitia oferecer a ela uma boa condição de vida). Essa decisão (escondida num véu de indecisão) contrariou o desejo ardente de Ofelinha. Mais que tudo, a obra literária era e sempre foi a prioridade das prioridades na vida de Pessoa.

No íntimo, o poeta talvez cogitasse que o casamento o distrairia do "destino" de tornar-se o super Camões (que de fato se tornou). Provavelmente se enganou, o casamento poderia numa certa altura melhorar e prolongar sua existência, dar-lhe alguma alegria além da escrita e do álcool - que consumia deveras - , e dos 80 cigarros diários.

Fernando Pessoa

"Gosto muito, mesmo muito, da Ofelinha. Aprecio muito, muitíssimo, a sua índole e o seu caráter. Se casar não casarei senão consigo.", escreveu Fernando Pessoa. Respondeu Ofélia: "Agradeço muito os teus beijos e envio-te também muitíssimos e muitos chi-corações apertados. Da tua, sempre mesmo muito tua, Ofélia." Trechos de cartas trocadas entre eles, inscritos agora na lápide de Ofélia no Cemitério dos Prazeres.

Trocaram inúmeras cartas, bilhetes, postais, recadinhos, desenhos, palavras inventadas, que muitos anos depois foram publicados em livro. Ofélia não se conformou com o rompimento. Sofreu em sigilo e em silêncio. Só veio a casar-se três anos depois da morte dele. Não teve filhos com o marido e este, felizmente,  não colocou nenhum obstáculo para que ela guardasse as cartas e demais documentos do ex-namorado.

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
                     Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)²

A ironia reside no fato de que, mais uma vez, os fados separam Ofelinha e Fernando. O jazigo onde os restos dela foram inumados fica próximo daquele onde estava o poeta antes de ir para os Jerônimos. Mais um desencontro.

A Câmara Municipal de Lisboa perdeu, talvez, a última oportunidade de reunir, ao menos simbolicamente, o que a vida separou. Poderia ter trasladado os restos de Ofelinha para o Mosteiro dos Jerônimos, aproximando-os, post-mortem, aos do poeta. Faz muito dó que não tenha sido assim.

Se é verdade que Pessoa foi um gênio literário, não é menos verdade que Ofélia foi uma mulher admirável em sua inteligência, discrição, sensibilidade e caráter, tendo influenciado positivamente a vida de Fernando, como comprova a extensa correspondência.

Ofelinha está para Fernando como Inês está para Pedro, no Mosteiro de Alcobaça.³ Será despropósito? São quatro personagens centrais na vida emocional de Portugal. São duas histórias de amor que não vingaram.

A reunião de Ofélia e Fernando pelo menos faria a alegria dos fantasmas dos antigos namorados. E de alguns românticos como eu que olham com ternura para aquele homem e aquela mulher singulares que sonharam um amor que nunca se realizou. O casal-que-não-foi entrou para a história dos grandes amores impossíveis. Como tantos e tantos no mundo.

O casal do Elétrico 28.
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¹O último desencontro entre Ofélia e Fernando Pessoa (excelente texto de Cristina Figueiredo):
 http://expresso.sapo.pt/sociedade/2016-02-14-O-ultimo-desencontro-entre-Ofelia-e-Fernando-Pessoa 

²Poesia completa de Álvaro de Campos, p. 225. Fernando Pessoa, Companhia das Letras, São Paulo, 2007.

³Pedro e Inês:
http://www.mosteiroalcobaca.pt/pt/index.php?s=white&pid=235