sábado, 28 de fevereiro de 2015

Peixe vivo

Jorge Adelar Finatto

Guaíba e a cidade. photo: jfinatto
 

Em 1975 eu tinha menos de 20 anos, o coração batia no escuro e nada estava perdido.

Carregava comigo alguns poetas mortos. A palavra estava viva.

Esse tempo ficou adormecido como um pôr-do-sol no fundo do rio.

A ditadura civil-militar maltratava os corpos, o desejo, o pensamento. Era noite calada. Proibida a livre circulação da emoção, das idéias. A verdade manchada com tarjas pretas nas bocas e nos jornais.

Mas havia gente que não desistia.

Os pássaros resistiam na praça.

Escondida como um segredo, havia uma rua quieta com perfume de açucena.

Eu trazia na alma a felicidade de estar vivo. Perdoai.

Existia um certo olhar, um cabelo em cacho nos ombros, uma saia azul. Esse olhar e esse cabelo inventavam um jeito de ser feliz.

Habitavam um lugar claro na escuridão.

O Guaíba fazia o trabalho de levar nossas lágrimas para o mar em negros cargueiros.

Havia eu estar vivo e ter menos de 20 anos.

Tinha aquela estrela brilhando na minha vida, apesar das bombas de gás lacrimogêneo, das prisões, dos desaparecimentos, do medo.
 
Coração aberto, peixe vivo.

O azul e branco do céu desenhado nas águas e naqueles olhos.

Um peixe voava entre as nuvens.

Sobrevivi àquilo em secreto, como quem descobriu um tesouro na Ilha de Pedras Brancas enquanto a cidade dormia.

Existia o rio, seu caminho largo para o sul em direção ao oceano.

A luz amarela do sol escorria entre as folhas e os galhos da Praça Dom Feliciano. Lilases resplandeciam nas flores dos jacarandás.

Havia uma promessa de primavera. Tinha menos de 20 anos.

De passo em passo o sentimento se cumpria. De mão em mão a manhã se erguia.

Não era ainda a primavera o que se via, mas um rascunho de flor no gradil da janela.

O coração voava colado à esperança.

Tinha o rio no fundo daqueles olhos, o horizonte de mar, o líquido azul infinito.
 
O amor (palavra proibida) navegava ao largo da cidade, sobrevivia ao medo e à morte.

O tempo era noite calada.

Eu tinha menos de 20 anos.

A vida saltava feito peixe vivo.

A estrela brilhava em meu caminho.
 
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Publicado em 22 de dezembro, 2009.
 

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Escrever no escasso da vida

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto


Escrever pra quê? Será que ainda existem leitores no mundo? Onde estarão, em que escondidas bibliotecas, em que salas e quartos solitários resistirão?

A impressão é que, a cada dez novos escritores que surgem, aparece apenas um leitor. As estantes das livrarias estão repletas de livros que ninguém lê. Todos os dias novos títulos vão somar-se ao mar-oceano existente. Quem lê tudo isso?

Às vezes desconfio que tem gente que vai à livraria, compra uma  sacola de livros, mas não lê. O livro como objeto decorativo, com poder de ostentação de leituras não acontecidas. Será?

Então a situação é a seguinte: pra salvar os escritores do risco de extinção, de hoje em diante todos vão ser também leitores. Esse o compromisso solene de cada escritor para a preservação da espécie.

Coisa triste é a criatura escrever, no rigor do esforço e no escasso da vida, e ninguém ler. Quem não precisa de um ora-veja nessa existência, um reconhecimentozinho? Ah, não, ninguém quer saber do outro! Será?

Eu sou solidário com os sem-leitores porque faço parte dessa multidão.

Dia desses um colega blogueiro me contou  que está querendo  pagar alguém pra ler as suas mal-traçadas. Ah, não!  Não podemos permitir que a sombra do desespero tome conta. Então, agora estou visitando a ilha do colega todos os dias.

Tenho visto muitas ilhas desertas, abandonadas, taperas virtuais. Os utensílios deixados pra trás mostram que um dia houve vida ali. É duro.

Acredito também que os livros nunca vão morrer. São objetos perfeitos na forma, carregam em si o espírito  humano desde vetustos tempos. Mas e os escritores desconhecidos e os blogueiros? Sobreviverão nessa penúria de leitores?

Não sei, não sei.
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 Texto revisto, publicado originalmente em 18 de setembro, 2010.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Entre panchos e chivitos

Jorge Adelar Finatto
 
Guillermo Cabrera Infante
 
Num bom café-restaurante de Montevideo, La Pasiva, na Av. 18 de Julio, fui comer alguma coisa na noite de domingo. Conheci um garçom simpático e educado, por volta dos 40 anos, que veio me atender. Entre a escolha do que comer e beber e a conversa solta de um domingo que escorregava na ampulheta no rumo da segunda, perguntei-lhe de onde era.

Era cubano e estava no Uruguai há um ano e pouco. Gosta muito do país - como eu - mas acha que tudo está muito caro na tierra de José Pepe Mujica. Também nisso concordamos, os preços estão mesmo muito altos, parece até que a moeda corrente é o dólar americano. De fato, o dólar comanda as transações e as moedas locais de nossos países parecem de brinquedo.

O garçom voa de mesa em mesa, desaparece atrás de bandejas de panchos e chivitos, e depois volta a aparecer e continuamos a prosa. A fim de testá-lo, digo versos do poema Tengo, de 1964, do importante poeta cubano Nicolás Guillén (1902-1989):

Tengo, vamos a ver,
tengo lo que tenía que tener.

Ao que ele completa com conhecimento de causa e boa memória:

Tengo, vamos a ver,
tengo el gusto de andar por mi país,
dueño de cuanto hay en él,
mirando bien de cerca lo que antes
no tuve ni podia tener.

Guillén foi uma devoção literária de minha juventude. Ele exaltou as conquistas da Revolução Cubana, mas já era um poeta enorme antes dela, sempre preocupado com temas sociais e com as injustiças. Na sua poesia a negritude surge com força numa linguagem original, sonora, cheia de ritmo e sensualidade.

Resolvi seguir adiante com a literatura cubana, de que tanto gosto, assim como gosto de Cuba e dos cubanos, apesar de nunca ter ido lá, e soltei para o culto garçom:

A máquina de escrever é a verdadeira máquina do tempo.

Não fiz menção ao nome do autor. Ele pensou, pensou e disse que não recordava (o trecho está na pág. 16 do livro A ninfa inconstante, de outro grande cubano, Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), publicado pela Folha de São Paulo, em 2012, tradução de Eduardo Brandão).

Quando revelei-lhe o nome do autor, ele disse que nunca tinha ouvido falar. Não se fala nele em Cuba. Eu lembrei que Cabrera Infante é um dos mais notáveis escritores de língua espanhola de todos os tempos, autor de um clássico raro e saboroso, Três tristes tigres, de 1967, um dos livros mais incríveis que conheço.

O  autor caribenho, aliás, era leitor confesso e encantado de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e de Macunaíma, de Mário de Andrade.*

Acontece que Cabrera Infante rompeu com a revolução quando percebeu o rumo autoritário que tomava. Acabou no exílio, em Londres, onde virou cidadão britânico e escreveu parte de sua obra.

A Ilha passou a ser vista com o manto da memória e da melancolia. Mas sem esquecer os óculos da poesia, do calor humano e da ironia.

Fiquei indignado pelo fato do amigo garçom não ter podido conhecer, em Cuba, por força da censura, um escritor deste porte, um nome que já se pode dizer universal.

O que só vem confirmar que, em Cuba, tudo tem somente um lado, o lado do poder, isto é, o lado da família Castro. A ditadura se prolonga, impunemente, desde  1959.** Tristemente.

Mas o cubano me restituiu a esperança ao dizer que ia procurar um livro de Cabrera Infante no dia seguinte. E me fez prometer - e eu prometi - que ia ler toda a poesia de José Martí.

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*Cabrera Infante, por Geneton Moraes Neto:
http://www.geneton.com.br/archives/000035.html
**Os direitos humanos em Cuba:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/02/cuba-e-os-direitos-humanos.html
 

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Juan Manuel Blanes

Jorge Adelar Finatto

La doma. JM Blanes, 1875* photo: jfinatto.
 
A visita ao Museo Nacional de Artes Visuales, em Montevideo, foi o ponto de partida para travar conhecimento com alguns dos principais artistas plásticos uruguaios.

Além de Carlos Federico Sáez, de que tratei em artigo anterior, tive oportunidade de ver de perto outros como Pedro Figari e Juan Manuel Blanes (1830-1901). Um belo achado.
 
Olhemos agora, mesmo que superficialmente, o trabalho de Blanes. Os traços, a modulação das cores, a composição, os motivos, todos esses elementos são originais na mão do artista e evidenciam alto refinamento construtivo. O pintor atingiu tal excelência em sua arte que facilmente podemos dar-lhe o título de mestre. De fato, influenciou muitos dentro e fora do Uruguai.

Entre suas telas, várias evocam cenas da vida dos gaúchos no campo. Há, também, aquelas em que a denúncia se faz presente, como na que mostra o massacre da Guerra da Tríplice Aliança, na qual Brasil, Argentina e Uruguai combateram e arruinaram, com apoio inglês, o Paraguai. Nela vemos uma mulher (La paraguaya) olhando desolada um cenário de devastação.

La paraguaya, JMBlanes, 1879.*

Temas sociais igualmente não lhe escapam da palheta. Veja-se a pintura em que apresenta a trágica passagem da febre amarela por Buenos Aires, com uma mãe morta e a criança ao lado do corpo caído.

Um episodio de la fiebre amarilla em Buenos Aires, JMBlanes, 1871.*

Existem, entrementes, os retratos, as cenas históricas,  e em todos o nível elevado da criação. A maestria dos movimentos, das figuras, dos detalhes, numa integração como poucas vezes se vê.

Los dos caminos. JMBlanes**

Numa época em que a fotografia era uma arte recente e de reduzido espectro, a obra de Juan Manuel Blanes fixou imagens que, de outra forma, teriam se perdido. Essa pintura figurativa em nenhum momento perde seu valor nem seu interesse.

As pinturas deste grande artista são ricas em conteúdo e luminosas na construção de formas e cores. Resgatam um tempo, suas faces e suas histórias. Não houvesse outras razões, essas já seriam suficientes para assegurar a Blanes um lugar entre os grandes nomes da pintura universal.

JMBlanes**
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*Exposição do Museo Nacional de Artes Visuales, Montevideo:
http://mnav.gub.uy:9000/cms.php?a=1

**Reprodução do site do Museo de Bellas Artes Juan Manuel Blanes, Montevideo:
http://blanes.montevideo.gub.uy/coleccion/juan-manuel-blanes
 

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

El olor a lluvia

Jorge Adelar Finatto

Vale do Olhar. Passo dos Ausentes. photo: jfinatto
 

O cheiro da chuva. O aroma de terra molhada. O jornal El País, da Espanha, publicou matéria sobre estudos de cientistas do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT) a respeito do característico odor que fica no ambiente após a chuva cair sobre a terra.
 
Os experts dão até nome ao aroma inconfundível: petricor. Vem das palavras gregas  petros, que significa pedra, e ikhôr, que é o líquido que flui pelas veias dos deuses, conforme a mitologia grega.
 
Segundo os cientistas, o contato das gotas de chuva com a terra gera bolhas de ar que se projetam para cima (feito bolhas de champanhe) e explodem, liberando a fragrância captada da terra que é carregada pelo vento.
 
Está bem. Não vou discutir com quem sabe mais de ciência do que eu. Mas, por favor, ninguém vai me ensinar o que é o cheiro de chuva e da terra molhada. Este assunto eu conheço bem.
 
O cheiro de terra molhada acontecia quando os adultos saíam para o trabalho e eu ficava em casa com a avó. Começava a chover e eu corria até a janela. E via a chuva caindo sobre o pátio e o jardim.
 
Então subia aquele aroma de terra molhada misturado com madressilva, ou com rosas ou cravos molhados. Uma mistura doce e suave.

A vida cheirava a esperança.

O perfume imemorial que a chuva deixa na atmosfera vem desde o início do mundo. Foi mais um dos presentes do Grande Perfumista a homens e mulheres (sempre tão distraídos da existência Dele).
 
Nenhum cientista vai me traduzir o que é este cálido perfume, porque pra mim ele é, antes de tudo, um sentimento.
 
O cheiro de chuva e terra molhada (olor a lluvia y tierra mojada) carrega toda minha infância dentro dele.

Uma bolha perfumada de felicidade.
 

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Um olhar habitado

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto
 
A exposição Sáez, un mirar habitado, no Museo Nacional de Artes Visuales, em Montevideo, é uma das gratas revelações desses dias montevideanos. Carlos Federico Sáez (1878-1901) nasceu em Mercedes, no Uruguai, e ainda na infância mostrou um grande talento para o desenho e a pintura. Um talento precoce e autodidata, que recebeu, do governo uruguaio, aos 14 anos, uma bolsa para estudar na Europa...
 
Instalação do ateliê do artista, no MNAV, por Osvaldo Reyno
photo: jfinatto
 
Na Itália buscou formação, inicialmente, na Academia de Belas Artes de Roma, mas logo se envolveu com as correntes artísticas italianas de fins do século XIX, de postura antiacadêmica. Passou a freqüentar ateliês de vários artistas.
 
Estudio, 1899, Sáez.*
 
O fato é que Sáez trazia em si o vigor e o refinamento do fazer pictórico. A viagem serviu para ampliar informações e enriquecer a visão de mundo. Mas a intuição profunda das formas e cores, a sensibilidade, o sentimento fecundo do artista já estavam com ele desde antes do nascimento...
 
Impressionam os retratos impecáveis, as naturezas mortas, as cenas, todos marcados pelo traço firme, generoso, inconfundível, numa sintaxe delicada.
 
Flores, 1892, Sáez. photo: jfinatto
 
Sáez instalou seu ateliê na Via Margutta, nº 32, lugar boêmio de Roma, em 1896, onde passou a trabalhar, receber amigos, modelos, fazer reuniões, e também recolher-se em solidão. Regressa a Montevideo em 1900, já doente, para o derradeiro convívio com a família que tanto amava. Continua a pintar até os últimos dias. Morre aos 22.
 
Do porto velho, 1897, Sáez. photo: jfinatto
 
Como alguém tão jovem conseguiu desenvolver-se e produzir tão admiravelmente?  Difícil saber. Mas uma coisa sabemos: Deus fala aos homens através dos grandes artistas. 
 
Parvas, 1893, Sáez.*
 
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* Imagem do site oficial do Museo Nacional de Artes Visuales, Montevideo:

sábado, 14 de fevereiro de 2015

A mulher do retrato

Jorge Adelar Finatto

photo da photo: jfinatto
 
E, no entanto, ela está ali, viva, na pequena moldura, sobre a mesa do vendedor de antiguidades na feira da Plaza Constitución em Montevideo. Encontrei-a na sexta-feira, 13/02/2015.

A brisa, um pouco fria, conversava com as folhas dos plátanos. O sol calmo espiava entre os galhos.
 
Viva e bela, lá está a mulher desconhecida de 120 anos atrás. O semblante revela que está em paz. Ou pelo menos resignada. Viver lhe traz algum encanto? Será feliz? Que sonhos acalentará no coração?

Parece que vestiu o seu vestido mais bonito pra tirar a fotografia. Sabia talvez que a imagem ia atravessar o tempo e oferecer-se a olhos estranhos e curiosos no futuro distante.

Um dia o retrato caiu do toucador da casa abandonada na Ciudad Vieja. Muitos anos se passaram longe da luz. Até que entrou num baú e foi levado ao antiquário. Depois à praça onde agora brilham, sob os plátanos, os olhos da mulher.

Feira de antiguidades. photo: jfinatto
 
 O que é uma fotografia? Um instantâneo que não se deixa morrer. 

Um fragmento de vida congelado no tempo.

Uma face de mulher não se perdeu graças ao cálido registro.
 
Pequena eternidade que não se esvaiu no nevoeiro.

Plaza Constitución. 13/02/2015. photo: jfinatto
 

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Painting four, The Beatles

Jorge Adelar Finatto

The Beatles. Pablo López (Pez). Exposição no Impo. Montevideo. photo: jfinatto
 
Nesta quarta-feira, (11/02), fui ao edifício da Imprensa Oficial do Uruguai aqui em Montevideo. Queria encontrar uma edição de 2010 do Diário Oficial que trazia uma matéria sobre o escritor Felisberto Hernández (1902-1964).
 
Imaginem: procurar uma publicação de cinco anos atrás num órgão público... Pois acreditem: não poderia haver melhor atendimento. A afabilidade e a eficiência das pessoas que atendem no local são dignas de registro. Tiveram de recorrer ao computador e depois ao arquivo para localizar a edição. Não esperei mais que dez minutos.

The Beatles. Pablo López (Pez). Exposição no Impo. Montevideo. photo: jfinatto
 
A funcionária retornou com o tão procurado Diário Oficial em mãos. Uma atenção e uma educação como poucas vezes vi.

Não cobraram pelo serviço nem meu nome perguntaram. Sabiam apenas que eu era um brasileiro leitor de Hernández. Um cidadão qualquer. Mas, neste país de Pepe Mujica, um cidadão qualquer tem valor e merece ser bem tratado. Portanto, meus cumprimentos à atuação da equipe da Imprensa Oficial uruguaia, nela incluído o senhor da segurança que me deu boas informações sobre a exposição The Beatles.

The Beatles. Pablo López (Pez). Exposição Impo. Montevideo. photo: jfinatto
 
                                   Pablo López
 
O edifício da Impo não é só um lugar para assuntos burocráticos. Há também um espaço reservado à arte em todo o andar térreo, entre as salas dos funcionários. E, neste momento, está em curso a exposição Painting Four, The Beatles, do artista plástico uruguaio Pablo López, conhecido por Pez (Montevideo, 1975).

The Beatles. Pablo Pez. Exposição no Impo. Montevideo. photo: jfinatto
 
É um excelente trabalho. O projeto compõe-se de 80 obras realizadas em várias técnicas. Pez investe na deformação característica da caricatura como ferramenta para sintetizar a personalidade de seus personagens.
 
Eu fiquei impressionado com a qualidade das pinturas, pedi autorização e fiz estas fotos. Um presente para os leitores. Eis aí mais uma razão para vir a Montevideo.
 

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

La vida es hoy

Jorge Adelar Finatto

La Carreta, obra em bronze de José Belloni. Montevideo. photo: jfinatto
 

Talvez ele gostasse de dizer que chegou àquela altura da vida em que o universo lhe segreda sua sabedoria. Mas não seria verdadeiro.
 
Vem-lhe à cabeça a lembrança do velho filósofo grego que saía pela cidade com uma lanterna acesa, em pleno dia, procurando um ser humano. Era um radical da sabedoria.

Diógenes vivia só na caverna de um barril.

É um recuerdo aleatório que acode ao viajante, sem nenhuma razão aparente, em meio à tarde de sol em Montevideo.

No Café Facal, na Avenida 18 de julho, olha o intenso movimento dos carros e ônibus. Mas olha mais ainda o movimento das pessoas nas calçadas que nessa hora, 17h30min, é intenso. Há pouco desceu no Aeroporto de Carrasco, passou pelo hotel e saiu.

Há seres humanos nas ruas de Montevideo. Uma cidade que tem algo de familiar nas suas calles de casas antigas, nos seus plátanos (dizem que há um plátano para cada habitante, num total de um milhão e meio).

O Uruguai tem 3,5 milhões de almas. O trato das pessoas é afável, educado. Não se vê miséria à solta nem violência. Esta, quando ocorre, é por exceção.

Plaza Constitución. photo: jfinatto

 O encanto de Montevideo está na alma harmoniosa da cidade

Não existe riqueza ostensiva nem o chamado glamour. O abismo entre os que têm tudo e os que nada têm nem é como em Pindorama. As pessoas têm sua dignidade na terra do presidente José "Pepe" Mujica, este sim um filósofo grego, no melhor sentido, rico de humildade e de saberes práticos que transforma em exemplos de vida.

Com ele os verbos repartir riquezas e melhorar a vida dos pobres ganharam sentidos talvez nunca antes vistos na América Latina. Se Brasil e Argentina tivessem um Mujica, provavelmente não estariam na lamentável situação em que se encontram.

O viajante não é um sábio como Diógenes. Nada sabe. O ofício de ser sábio está sempre muito além. Quer aprender a ser algo um pouco melhor. Por isso, não vai sair por aí com uma lanterna acesa nesse dia azul de sol nem pretende recolher-se num barril na calle movimentada.

Leu, num grafite fotografado por Gustavo Castagnello (Uruguai), la vida es hoy. Sim, a vida é hoje. Ontem foi, amanhã será. Mas, por ora, a vida só pode ser agora. E pode ser diferente, mais leve.

O meu reino por um pouco de leveza, pensa o viajante.

Os plátanos e as pessoas humanizam as ruas. O Río de la Plata convida o olhar. As pessoas não têm medo, olham em frente e trilham um caminho. Habitam a cidade como os peixes habitam as águas doces do rio.
  

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Plazoleta Julio Cortázar

Jorge Adelar Finatto
 
Plazoleta Julio Cortázar. Palermo Viejo. Buenos Aires. photo: jfinatto
 
Uma vez que um parente nosso muito afastado chegou a ser ministro, conseguimos que ele nomeasse boa parte da família para a sucursal do Correio da rua Serrano.

           Julio Cortázar, in Correios e telecomunicações.* O conto se passa na calle Serrano, atual Jorge Luis Borges

Julio Cortázar. fonte: Wikipédia

Saí de Puerto Madero, o bairro mais novo de Buenos Aires, e fui a Palermo, um dos mais antigos e tradicionais. Esta a missão que me dei para aproveitar o início da tarde bonaerense: ver de perto a pracinha Julio Cortázar, no cruzamento das ruas Honduras e Jorge Luis Borges. Desci do táxi na frente.

Não havia ninguém ali naquela hora solar. No instante sufocante e tremeluzente é que se dá valor ao velho chapéu de palha, que não abandono nunca.

Plazoleta Julio Cortázar. Palermo Viejo. photo: jfinatto


photo: jfinatto
 
 
Nos fins de semana a plazoleta se transforma num local movimentado com sua feira de artesanato e outras criações. Palermo é um grande bairro. Os moradores nomeiam cada setor conforme suas características e idiossincrasias.
 
A pracinha Cortázar fica no que denominam Palermo Viejo ou Soho, considerado o centro do design da capital argentina. Em volta da praça e ao longo das ruas, encontramos casas antigas, coloridas,  bares, livrarias, restaurantes, lojas de vestuário, oficinas descoladas. É um bairro com vida noturna e diurna. Há também Palermo Hollywood, das produções para tv e cinema.
 
Não me demorei muito no local por causa do sol forte sob o céu chapado de azul com poucas nuvens. Um lindo dia, como se diz (embora, pra mim, dia lindo é com frio, cerração, chuva e, se possível, um poquito de nieve). Vá entender os abismos da alma humana.

photo: jfinatto
 
Nada de especial a mencionar em relação à praça, exceto que, no chão, há pedras para jogar amarelinha, título do famoso livro do escritor (Rayuela). Antigamente era denominada Plaza Serrano, nome pelo qual muitos ainda a chamam. O rebatismo foi uma homenagem da ciudad de Buenos Aires ao escritor ilustre e data de 1994. Fica no extremo da calle Jorge Luis Borges, que antes, por sua vez, se chamava Serrano. 
 
Cortázar, vale dizer, tinha especial afeição por Palermo, bairro que menciona várias vezes em sua literatura. Basta ler, por exemplo, os contos Simulacros Correios e telecomunicações, ambos do livro Histórias de cronópios e de famas. Aliás, este livro é um clássico da obra cortazariana, misturando o fantástico, o humor e uma certa melancolia.

Palermo Viejo (Soho). photo: finatto

Melancolia, de resto, que dificilmente se encontrará nos espíritos que se acham senhores de verdades absolutas e cujas existências não conhecem dúvidas nem angústias. (À noite, na solidão abissal do pré-sono, não suportam ficar com os próprios pensamentos.)
 
Jorge Luis Borges (1899-1986) viveu no bairro com  a família, na infância, entre 1901 e 1914, na casa número 2135. Em vários textos, o escritor faz alusão a Palermo, que habita sua memória afetiva.

Abençoados por Cortázar e Borges, os viventes de Palermo são personagens póstumos de um lugar que foi muito caro a ambos e que faz parte do que de melhor se produziu em literatura no século XX.

photo: jfinatto
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*Histórias de cronópios e de famas. Julio Cortázar. 12ª edição. Tradução de Gloria Rodríguez. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2009. pp. 27/28
 

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Saudade do outono

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
A mais bela das estações, para o mortal que escreve nesta rude página elétrica, é o outono. De boa vontade embrulharia o verão e o mandaria direto para o inverno.
 
Não quero desfazer das outras estações, cada qual com seus gostos. O verão, por exemplo: tem muita gente que gosta. Mas é no outono que eu renasço.
 
Outono significa transformação, as mudanças tão necessárias e urgentes para a vida seguir seu curso. É o recolher das seivas, reunião de forças, introspecção, preparo e passagem para um outro tempo.
 
Observei a copa dos plátanos esses dias e vi que começam a despontar os primeiros pigmentos amarelos nas folhas.

É pré-outono, uma notícia que a natureza mais íntima da flora nos manda em pleno verão. Para não esquecermos a beleza que está por chegar. A paisagem impressionista se anuncia. Nem todos percebem esses avisos. Só os ávidos por outono.
 
Os cáquis estão muito verdes ainda nos pés, mas crescem em silêncio entre as folhas e prometem doces dias em sua pele dourada.
 
O outono não é uma rainha decrépita, longe disso. É uma princesa discreta, sensual e misteriosa, que traz o véu com mil cores e tons, além de delicadas fragrâncias.

As nuvens são cor de açúcar queimado no entardecer.

Escrevo palavras de saudação ao outono que se aproxima, trazendo na bagagem seus ocres e amarelos, suas seivas, suas luminosas mutações, sua concentração na permanência da vida.

Um texto de fuga, alguém dirá, com alguma razão. A palavra há de servir, também, às vezes, para a evasão do real, sempre tão importante a fim evitar a loucura por excesso da realidade.

Eu ando mesmo com uma bruta saudade das delicadezas do outono em meio à barbárie destes dias.

As manhãs e tardes da estação das folhas cadentes prometem leveza nos traços iridescentes. A tristeza vai ter de esperar.
 

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

El fantasma de la isla

Jorge Adelar Finatto

Puerto Madero, Buenos Aires. photo: jfinatto


O que a gente leva da vida são uns recuerdos de viagem, Maria. É o que dizias, eu menino, lembra?

O que fica é um pouco de bruma nas mãos, quase nada. Uns retratos velhos, uns livros empoeirados, umas dores inconfessadas, uns remorsos, umas raivas, umas ilusões ressequidas pelo tempo. E a impressão de que, talvez, não vale a pena tanto cansaço. Não vale um caracol essa louca passagem para o nada.

Agora ando a reunir meus recuerdos de viagem, Maria. Como um menino que vira com ternura as folhas do seu álbum.

Por isso resolvi sair pelo Arroio Tega, nesta manhã, com meu barco de papel. Vou viajar, Maria. Levo dentro do barquinho a mala de prodígios (as histórias que me contavas para espantar o rugido do vento nos contrafortes da solidão, as noites frias de inverno que passavas comigo ao colo em volta do fogão a lenha).

O trem que custava, como custava!, a chegar na estação!

O barquinho é branco como nuvem e tem a vela azul-clara. Construí-o com uma folha de caderno escolar.

Hoje andei com ele na mão até a beira do arroio e, no fim da tarde, lancei-o suavemente na corrente e pulei dentro. Sentei ao fundo, na popa, e manejei o pequeno leme. Estamos navegando sob a claridade longínqua das estrelas.

Só os meninos e alguns poucos velhos sabem navegar num barco de papel. Vejo as luzes vermelhas de um avião piscando distantes no céu.

O barco de papel é frágil e breve como a vida. O tempo, Adamastor enfurecido, devora tudo que encontra pela frente e arrasta nossos barquinhos para o fundo das águas. Mas nem por isso desisto de navegar.

O instante de ternura é nossa plausível eternidade, Maria.

Vamos, barquinho, vamos deslizar entre as estrelas.