domingo, 20 de julho de 2014

O impossível voo de Francisco Orange Junge Mit Flügeln dos Santos Passos, neto de Francisca Hände Guter von Geburt, parteira, viúva e vidente, em direção a Lisboa, de onde nunca mais voltou nem mandou notícias

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto



De como Francisco Orange caiu com seu balão em pleno Terreiro do Paço, em Lisboa, após sobreviver a uma tempestade no Oceano Atlântico. Do que sucedeu depois que foi preso pelas autoridades portuguesas e por que decidiu  ir viver na aldeia de Carvalhal e cantar o fado no Bairro Alto.

O nome é longo e misterioso como os pensamentos do personagem desta insólita história: Francisco Orange Junge Mit Flügeln dos Santos Passos. Era um dos loucos da cidade.

Em Passo dos Ausentes, a palavra louco foi expulsa dos dicionários e das falas. Não é pronunciada em respeito a ilustres antepassados e a alguns dos atuais habitantes. Para o Dr. Fredolino Lancaster, único médico da cidade, 92 anos, ainda no pleno exercício do ofício:
 
- A expressão deve ser evitada. As palavras têm fio cortante, são capazes de rasgar mesmo tecidos mais rijos. Com palavras reabrem-se facilmente velhas feridas. Com palavras até mesmo se mata. Chamar alguém de doido, em Passo dos Ausentes, é rematada crueldade, conhecendo nossas origens e nossos ancestrais. De resto, quem é inteiramente são neste mundo, quem não cometeu uma loucura alguma vez, em pensamento ou ação? Quem não guarda no ermo de si um difícil remorso? Apontar alguém como maluco é uma leviana redução do outro.
 
- Digamos que temos aqui temperamentos sensíveis, insondáveis, determinados, brilhantes às vezes, herança de séculos de isolamento e ruminação do nada.

- O oblívio e a solidão produzem seus frutos - pondera o sábio esculápio.
 
Francisco Orange, o menino com asas, passou a infância calado, morando com a avó no Sobrado dos Espelhos. Contam os que alguma vez viram seu corpo imaculado que o infante nasceu com um par de asas azuis sobre os ombros. A octogenária Francisca Hände Guter von Geburt, parteira, viúva e vidente, que criou o neto na ausência dos pais, nunca fez segredo sobre suas asas, embora nunca as mostrasse a ninguém.

Até o dia em que Francisco Orange, aos 10 anos, proibiu-a de tocar no assunto, sob pena de jogar-se do Penhasco das Almas que Voam. Exatamente como fizeram seus pais, de mãos dadas, 10 dias depois do seu nascimento. Nunca ninguém soube por quê. Falou-se (aqui ninguém nos ouça) que foi caso de incesto entre irmãos, que resultou em inesperada e oculta gravidez.

Como se recusasse a conviver com outras crianças, aprendeu a ler, escrever e fazer contas em casa com um preceptor germânico. Oscar Edouardt Mann nasceu em Lübeck, Alemanha, em 1905. Veio parar em Passo dos Ausentes em 1930 com sua misteriosa mala preta de couro. Nunca mais saiu daqui. Muitos dizem que o convívio com Oscar tornou o menino ainda mais recluso e ausente. O mestre conseguiu incutir no espírito do aluno suas duas grandes paixões: a antimatéria e os mundos paralelos.

A adolescência encontrou Francisco Orange fazendo projetos mirabolantes de viagens espaciais e construindo coisas que voam. Primeiro foram as enormes pandorgas azuis, as maiores e mais bonitas que iluminaram estes céus.
 
Depois vieram as minúsculas e coloridas borboletas de papel de seda. No início de maio, costumava jogá-las do alto da Torre do Relógio, em quantidade tal que se espalhavam por toda a cidade.
 
Nefelindo Acquaviva, construtor de aeroplanos, dirigíveis e balões de fundo de quintal, com vários desastres no currículo, convidou o menino para aprender a arte da navegação pelo ar. Daí em diante iniciou-se uma longa parceria entre o jovem incomunicável e o mentor nefelibata. Vários aparelhos foram construídos pelos dois. Pilotados por Acquaviva, todos vieram ao chão, sendo incompreensível que a morte ainda não o tenha colhido.

Aos 20 anos, Francisco Orange construiu sozinho um primeiro e pequeno dirigível, que deixou o mestre orgulhoso. Com a geringonça, aventurou-se aos ares até desaparecer nas alturas e lonjuras das montanhas azuis dos Campos de Cima do Esquecimento no frio glacial de julho. Não retornou. Uma expedição de busca foi organizada na Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Musical, Geológica, Astronômica, Antropológica e Antropofágica de Passo dos Ausentes, por iniciativa de seu presidente, o filósofo Don Sigofredo de Alcantis.
 
A expedição encontrou o navegante dez dias depois, no Contraforte dos Capuchinhos, magro, esquálido, enrodilhado no alto de um cipreste, a poucos metros de um penhasco. O arvorista Guilherme Tadeus Baum salvou-o, utilizando um complicado sistema de cordas e polias.

Momentos após o salvamento, o dirigível afundou no abismo.
 
Acostumado a terríveis desastres com suas estrovengas voadoras, Acquaviva sentiu imenso júbilo pela frieza e determinação de seu discípulo, quando o viu descer estropiado do Jeep da Sociedade Histórica na Praça da Ausência, onde um grupo de ruidosos admiradores o esperavam.

Francisca disse então a um incrédulo Don Sigofredo de Alcantis:
 
- É o modo que ele encontrou de ser feliz, quer ficar mais perto dos anjos, de Deus e dos pais. Deixem o Francisco em paz. Deus sabe o que faz. Ele tem a proteção de São Francisco. Nasceu com as duas asinhas azuis sobre os ombros. Eu sempre soube que o meu menino ia voar um dia. 
 
Juan Niebla, músico cego, tocador de bandoneón na estação de trem abandonada, observador atento das histórias da cidade, relatou o último voo de Francisco Orange durante uma reunião da Sociedade Histórica:
 
- Foi numa manhã de novembro de 1975. Os ventos de finados andavam loucos por aí. Francisco Orange tinha então 25 anos, batizou o balão recém-construído de Terra dos Ausentes, no qual ele e Acquaviva trabalharam por 4 anos. Disse que ia embora para Portugal, de onde viera o trisavô materno, natural de Carvalhal.

- De nada adiantaram os nossos apelos como sabem. Desamarrou as cordas e ganhou os ares no quintal de Acquaviva, sumindo em direção ao Oceano Atlântico. Não mais se soube dele até o dia em que o nosso astrônomo, Palomar Boavista, pesquisando na hemeroteca Biblioteca Pública de Porto Alegre, deparou-se com aquela notícia do Correio do Povo, gerada pela France-Presse.
 
- A foto de um enorme e remendado balão azul caído no Terreiro do Paço, em Lisboa, à margem do Tejo, com aquele homem magro, vestindo mastigada roupa preta, com barba negra abundante e olhos fundos, não deixava dúvida. Ali estava o menino com asas de Passo dos Ausentes. O aparelho - o que restou dele - foi recolhido pelas autoridades. O insólito viajante teve de explicar-se à polícia durantes alguns dias - contou Niebla.

- No dia em que partiu de Passo dos Ausentes, os tristes ventos de novembro o empurraram rapidamente para o Atlântico. Cinco dias depois uma tempestade o derrubou em Cabo Verde. Sobreviveu por milagre. Com auxílio de gentis almas, após um ano de trabalho, consertou a nave e levantou âncora novamente. Dois dias mais tarde, foi colhido pelo mau tempo em pleno deserto do Saara, no sul do Marrocos, vindo a cair outra vez. Acolhido por beduínos, sobreviveu. Ficou dois anos no deserto com aquela tribo, arrumou o aparelho e alçou voo para Portugal.
 
- As pessoas do deserto foram as melhores que conheci na vida. Com elas não sentia o gelo da solidão me queimando por dentro. Não sei o que vai ser feito da minha vida. Provavelmente vou desaparecer entre as nuvens qualquer dia, ou afundar num penhasco - declarou à repórter da France-Presse, encerrando a entrevista, enquanto a polícia o levava.

A esperança de que Francisco Orange volte um dia para casa com seu solitário balão vai se dissipando com o passar dos anos. Afinal, tudo envelhece no mundo e as coisas passam.

Nunca mais tivemos notícia do nosso menino com asas. Informes distantes dão conta de que foi viver na aldeia de Carvalhal e que, em certos dias de saudade das montanhas azuis dos Campos de Cima do Esquecimento, vai cantar o fado na Tasca do Chico, no Bairro Alto, na ensolarada Lisboa.

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Texto revisto e ampliado, publicado originalmente em 6 de agosto, 2012.