domingo, 29 de junho de 2014

Notícia do fim do mundo

Jorge Adelar Finatto
 
Campos de Cima do Esquecimento. photo: jfinatto


Uma voz disse a Juan Niebla que o mundo ia se acabar. Aí a história começou.

Eu estava apagando as luzes do escritório, às 3 da madrugada, quando ouvi batidas na porta. Pelo adiantado da hora pensei que tinha acontecido uma tragédia.
 
Lembrei que, na tarde anterior, Nefelindo Acquaviva saíra com seu dirigível em direção ao Contraforte dos Capuchinhos para visitar nosso amigo Claudionor, o Anacoreta, que vive em solidão no interior de uma caverna. O tempo não estava bom, havia espessa neblina e garoava. Recomendei-lhe cuidado ao navegar sobre o Vale do Olhar, travessia perigosa. Ali um dia azul pode transformar-se, de repente, em tempestade, sem nenhuma explicação.
 
Desci a escada o mais depressa que pude. Ao abrir a porta encontrei Juan Niebla quase sem fôlego. Segurava a bengala com as duas mãos e estava muito trêmulo. Tinha atravessado sozinho as ruas adormecidas, apesar da cegueira e dos 87 anos.
 
Trouxe meu amigo para perto da lareira da sala, acomodei-o no sofá entre os dois gatos. Fui preparar um chá de maçã, enquanto ele se aquecia e se acalmava. Secou nervosamente com o lenço o suor do rosto.

Os olhos azuis parados, olhando o indefinido. Juan é músico desde 1943, quando foi aprovado em concurso público da cidade. Naquele mesmo ano, aos 16 de idade, ficou cego. Seu posto foi sempre a estação de trem, tendo a função de receber e despedir os viajantes com a música do bandoneón.
 
Após a extinção da estrada de ferro, na década de 1950, continuou trabalhando naquele lugar. No amplo espaço destinado à venda de bilhetes, instalou-se o Café da Ausência que é o ponto de encontro de quem curte arte e música. Tem, além das mesinhas com toalha xadrez, um pequeno palco e uma grande vidraça lateral com vista para o Vale do Olhar. As quintas-feiras são reservadas aos concertos de Juan Niebla e seus convidados, em geral músicos da Orquestra de Câmara de Passo dos Ausentes. 
 
Depois de beber o chá, acalmou-se. Perguntei-lhe o que havia acontecido:
 
- Eu estava deitado, no entressono, meio lá, meio cá, já tinha rezado o Pai Nosso, quando ouvi uma voz de homem que parecia vir do sótão. Disse a voz:

- Juan, o mundo vai ser destruído em breve. A coisa vai começar por Passo dos Ausentes. A aldeia vai ser varrida em poucos segundos. Fortíssimos ventos virão roncando pelas encostas dos chapadões de basalto. Não vai sobrar nenhuma casa em pé nem ninguém. Eu vim da esfera superior com ordem expressa de te avisar, porque és a pessoa mais desprotegida deste povoado. O Homem resolveu te poupar do desastre. No dia 26 de junho próximo, vá para a beira do Perau das Vozes Caídas e aguarde o nascer do Sol. Uma nuvem dourada virá te buscar. 
 
- Eu nunca tinha ouvido uma voz tão fria, côncava. Parece que vinha de dentro de um tonel oco, sei lá. Num ímpeto saltei da cama e abri a janela pra respirar, pois tinha impressão de que me faltava o ar. Coloquei as botas e o capote e saí. Viver só é difícil. Com vozes no sótão é ainda pior. Se o fim do mundo está chegando, eu quero ficar perto dos amigos. E amanhã vou avisar todos que puder. Depois quero que me leves para o mosteiro no Contraforte dos Capuchinhos.
 
Juan dormiu na minha casa e, no outro dia, bem cedo, saiu para contar por aí o que a voz lhe dissera.

A cabeleira branca do velho músico desfiava-se no ar gelado da manhã de junho, a bengala percutia no chão, o capote preto se inflava ao vento. De tanto andar pelas ruas da cidade, ele conhece todos os buracos e esquinas.

A maioria das pessoas não deu importância à história. Os mais antigos, porém, ficaram aflitos. Essa aflição tem nome e sobrenome: Eleutério Ombra

Em 1755 o padre jesuíta italiano Eleutério Ombra, também ele cego e quase nonagenário, teve uma visão dias antes de São Miguel das Missões ser invadida e destruída pelos exércitos de Espanha e Portugal. Disse ele, durante o cerco, na última missa, que uma nova São Miguel se ergueria perto das nuvens, sobre altas montanhas, com graça e fulgor, após o massacre dos Sete Povos Missioneiros.
  
Todavia, advertiu o sacerdote, uma tenebrosa sombra rondaria o lugar e poderia devorá-lo, porque a injustiça cometida contra as Missões atravessaria os séculos e perseguiria os descendentes de São Miguel.
 
- O território permanecerá a salvo enquanto se mantiver invisível, envolto nas brumas glaciais da ausência.
 
O documento com essa profecia se encontra arquivado na Sociedade Histórica.

Atendendo o pedido de Niebla, coloquei algumas tralhas no Jeep (modelo 1947), junto com o livro de contos do uruguaio Juan José Morosoli, e rumamos para o mosteiro dos Capuchos do Perpétuo Amanhecer.

O superior do convento, cujo nome é, por acaso, Dom Eleutério, nos recebeu com gentileza. Fomos para nossas celas e depois ouvimos sua orientação, na palração noturna do refeitório:

- Já que o mundo vai acabar, segundo informa nosso irmão Juan Niebla, convém que reflitamos um pouco sobre a vida que temos levado. E tratemos de endireitar o torto nesses dias que nos restam (dia mais, dia menos, o mundo acaba pra todo mundo, não é mesmo?) Aqui no mosteiro, como se sabe, cumprimos tarefas também. O senhor Jorge vai trabalhar por esses dias na horta, longe da biblioteca. Vamos deixar os livros, nesses dias, para os irmãos que se envolvem na faina diária de produzir o nosso alimento. Juan Niebla irá ensaiar As quatro Estações Portenhas, de Piazzolla, e nos dará o prazer de ser o solista no concerto de sexta-feira à noite, ao lado do nosso Conjunto Barroco. Os monges, somos 24 no momento, ficaremos muito agradecidos.

Passei os dias lidando na horta, plantei 4 canteiros de alface e outros cinco de feijão e tomate. Alvorada às 5h. Ao retornar para a cela, de noitinha, depois da singela refeição, mal conseguia abrir o livro de Morosoli à luz das velas. Caía logo no sono.

Juan Niebla acalmou-se, dividindo o tempo entre as orações na capela e os ensaios com os músicos. Disse-me Dom Eleutério:

- O Juan anda muito atormentado com a idéia da morte próxima. Mas ele tem boa saúde e pode passar bem dos 100. Fizeram o certo vindo pra cá. Os dias no mosteiro vão serenizá-lo.

Uma madrugada de rebuliço no céu, com raios e trovões, abri a janela. Queria ver as imagens do fim do mundo. Choveu uma chuva espalhada, a terra exalou um cheiro bom. De manhã, abriu um dia azul e lavado como depois do Dilúvio. Voltei pra lida na horta.

Ficamos 15 dias no mosteiro. Não ouvimos explosão, fumaça ou qualquer coisa que indicasse o fim do mundo. Resolvemos agradecer a hospitalidade dos monges e retornamos.

Subindo pelas curvas da estrada de terra e pedra, indaguei de Juan se, afinal, aquela voz foi mesmo real.

- Não sei, não sei, tive sonhos naquela noite. Num deles até minha falecida mãe conversou comigo. Não sei, tudo parecia tão real...

Quando chegamos em Passo dos Ausentes, a vida seguia no costume. Estacionei na praça. Foi bom ver a barbearia aberta, os pássaros funcionando nos galhos. O velho carteiro João Francisco dormia no cubículo do correio. As casas com as janelas abertas, as magnólias em flor nas calçadas, as chaminés fumegando.

O dirigível de Nefelindo Acquaviva estava no mesmo lugar, amarrado no Cedro do Líbano perto da estação de trem.

Palomar Boavista, o astrônomo, cruzou conosco, lançou um olhar de deboche e perguntou:

- Mas então, como foi o fim do mundo? Aqui como podem ver correu tudo bem. Estamos ansiosos por ouvir os detalhes da aventura na próxima reunião da Sociedade Histórica.

Deixei Juan Niebla na casa dele, voltei pro meu canto. Pra distrair e purificar o espírito, comecei um canteiro de couve.