quarta-feira, 21 de maio de 2014

Ao mestre Marcelo Küfner

Lorenzo Finatto
 
Promotor de Justiça Marcelo Küfner
 
Em 14 de maio último, me deparei com a nota da página 33 do jornal Zero Hora: “10 anos de falecimento de Marcelo Dario Muñoz Küfner”. Lembro quando recebi a notícia da morte do querido professor, estava em uma aula de Direito de Família, no último semestre da faculdade de Direito da PUC-RS. A professora entrou e contou para a turma o que havia acontecido naquela madrugada.
A notícia triste e atordoante deixou a todos abatidos e perplexos naquela manhã, especialmente os que, como eu, haviam sido alunos do professor Marcelo Küfner na cadeira de Direito Internacional Público.
Eu tinha 18 anos na época e me chamava atenção o estilo do mestre, a maneira humana como ministrava as suas aulas. Um tipo físico árabe, era muito talentoso ao abordar os temas de Direito Internacional - fascinantes, aliás. As colegas não ficavam indiferentes, seguidamente Marcelo estava rodeado delas, tratando-as com respeito e atenção, o que certamente as encantava mais ainda.
Era o tipo de pessoa que quando começava a falar todos paravam para escutar. Apesar de jovem, tinha muito conteúdo e vivências interessantes. Não era uma pessoa afetada, que se considerasse superior aos demais. Sua liderança era natural e meritória.
Muitas histórias giravam em torno do professor. Recordo de uma segundo a qual, quando ainda mais moço, ele havia vendido o seu automóvel – um fusca – para ajudar a custear uma viagem pela Europa. Eu nunca soube ao certo da veracidade desta e de outras histórias que eram contadas a seu respeito. Mas acredito nelas, pois combinam com seu charme e com o carisma incomum que possuía. Com a pessoa humana que ele era.
Durante uma apresentação de grupos, de repente o mestre perguntou no meu ouvido:
- Em qual quartel você está servindo?
Me causou surpresa a pergunta, pois eu não havia falado nada a respeito. Obviamente, meu corte mínimo de cabelo denunciava minha condição de aluno do CPOR. Penso que o professor deva ter servido ao Exército também, pois falou brevemente do assunto, como quem conhecesse a realidade da caserna.
Nos anos seguintes, soube que ele havia deixado de dar aulas na faculdade e que estava estudando para o concurso de Promotor de Justiça, no qual foi depois aprovado. Eu acompanhava a vida do mestre à distância, como um admirador que não teve oportunidade de encontrá-lo e dizer o quanto ele era merecedor de tudo o que havia conquistado. E quantas conquistas não haveria ainda de obter!
Ele tomou posse no cargo e, novo na carreira, numa noite ficou até altas horas no prédio do Ministério Público, organizando os processos, tomando pé da situação – era mesmo trabalhador. Quando, então, percebeu um acidente de automóvel. Foi averiguar. O motorista era policial militar (que, ao que parece, apresentava sinais de embriaguez). Marcelo acionou a polícia, e o assassino, mesmo já estando cercado por outros policiais militares que atendiam a ocorrência no local, sacou a arma e atirou no Promotor. Uma desgraça. Uma tragédia sem explicação.*
Somos um país extremamente violento, as estatísticas mostram isso. Por vezes nos sentimos pessoas que a qualquer momento podem virar um número na estatística.
Marcelo Küfner tem hoje um prêmio de Direitos Humanos do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul que leva o seu nome, “Prêmio de Direitos Humanos Marcelo Küfner”:
Criado em 2005, tem o objetivo de homenagear e conceder visibilidade a ações valorosas na área da promoção de direitos humanos, em especial, em atividades destinadas a reduzir a violência na cidade e no campo, e diminuir as desigualdades sociais em comunidades particularmente atingidas pela violência. (http://www.amprs.org.br/index.php/a-AMP/RS/responsabilidade-social/premio-marcelo-kufner/premio-de-direitos-humanos-marcelo-kufner)
Há também edifícios e auditórios do Ministério Público estadual que levam o seu nome, bem como uma rua em Porto Alegre. Justas homenagens.
Há 10 anos, quando recebi a notícia triste, eu pouco sabia da vida e menos ainda da  morte. A respeito da morte, por sinal, pouco posso dizer pra confortar alguém. Para mim ela é tão inaceitável quanto inevitável. Mas não podia ser da forma como aconteceu.
Penso, porém, que se há alguma coisa que sirva de consolo diante da morte, ao menos nesse sistema em que vivemos, esta é a boa e afetuosa lembrança que nossa pessoa possa deixar nos outros. E é esta a lembrança que tenho do professor Marcelo e quero dividi-la com todos.
Queria ter escrito este texto há mais tempo. O Marcelo foi uma dessas pessoas que passam por nós e deixam ensinamento e saudade.
Fica, então, esta singela mas sincera homenagem. Ao mestre Marcelo Küfner, com carinho.

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* O réu, submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, foi condenado a 20 anos de prisão e teve decretada a perda do cargo público.