domingo, 30 de novembro de 2014

O raio perfumado

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 
De como Claudionor, o Anacoreta, emigrou para o planeta FAJ 376, na constelação de Rio Erídano, a 35 milhões de anos-luz. O embarque na nave interestelar em plena Praça da Ausência, sob o olhar incrédulo dos 495 habitantes da cidade. Onde se conta como o fantasma do poeta Rainer Maria Rilke, em suas aparições noturnas na Biblioteca Pública Municipal de Passo dos Ausentes, foi o causador da grande viagem e se dão a conhecer outros eventos.
 
Faz 10 anos que Claudionor, o Anacoreta, afastou-se do mundo. Foi viver em solidão numa caverna do Contraforte dos Capuchinhos. Faz 10 anos que Mocita de La Vega ficou só e não teve mais ninguém depois que ele se foi.

Claudionor  tornou-se um místico conhecido e respeitado em toda a região. Vive em estado de contemplação desde a desilusão amorosa,  aos 20 anos.
 
Eles jamais revelaram o que motivou o rompimento. Foram inseparáveis desde a infância até o fatídico dia em que Claudionor surpreendeu Mocita nos braços do fantasma do poeta Rainer Maria Rilke, na Biblioteca Pública de Passo dos Ausentes, onde ela é bibliotecária.

A paixão literária transfigurou-se entre a jovem guardiã de livros e o bardo. Aparições freqüentes de Rilke na Biblioteca afetaram o coração de Mocita, apaixonada pela obra do poeta, em especial pelas Elegias de Duíno, as quais sabia de cor. O volátil não resistiu aos cabelos negros, à pele alva como o luar e à sensibilidade da bibliotecária que traz no corpo os contornos de um violão.

Claudionor sentiu-se desmoronar depois do que viu - segundo dizem as línguas ferinas. Despediu-se da mãe, a costureira Helena dos Santos Leaens e Bragança, numa cinzenta manhã de julho de 2004. Disse que ia procurar mudas de jasmim na mata, a principal paixão de sua vida depois de Mocita. Nunca mais voltou.

Um ano ficou sumido. Nada menos do que cinco expedições saíram à sua procura. Rastrearam-no pelas matas e até mesmo no fundo de abismos. Concluíram que ele tinha se atirado num dos muitos penhascos que cercam os Campos de Cima do Esquecimento. O corpo fora devorado por onça ou leão-baio, feras que ainda habitam a profundeza da Mata Atlântica.

Isto foi assim até o dia em que o pombo-correio dos Capuchos do Perpétuo Amanhecer trouxe à cidade um bilhete do superior da ordem informando que Claudionor estava vivo. Vivia em reclusão numa caverna não distante do mosteiro. No informe especificou as cooordenadas do lugar onde o místico se encontrava, "vivendo uma vida nova, voltada ao silêncio e ao encontro com Deus e os Anjos, nas altas esferas do reino espiritual".

A caverna de Claudionor situa-se no alto de uma chapada no Contraforte dos Capuchinhos, a 2 mil metros de altitude. De lá, olhando-se para leste, tem-se a visão azul e distante do Oceano Atlântico. Flores silvestres margeiam o caminho de pedras e grama que vai dar na porta da austera habitação.

A barba espessa e a cabeleira negra sobre a túnica branca escondem o homem ainda moço.
 
Em julho de 2014, outra mensagem de Dom Eleutério, o Benigno, foi entregue pelo pombo-correio na Sociedade Histórica, Geográfica, Literária, Artística, Astronômica, Antropológica, Esportiva, Recreativa, Geológica e Antropofágica de Passo dos Ausentes, aos cuidados de seu presidente, o filósofo Don Sigofredo de Alcantis.

Enquanto Don Sigofredo comentava o conteúdo da mensagem com Mocita, secretária da sociedade, um fato estranho se passou nos céus da cidade.

Um objeto em forma de bola, achatado nos polos, com cerca de 20 metros de diâmetro por 10 de altura, surgiu do nada e cruzou lentamente o espaço aéreo de Passo dos Ausentes. Movia-se sem qualquer ruído. Depois de sobrevoar o casario e a igreja, parou sobre a Praça da Ausência, a 30 metros do chão. Era uma tarde fria de céu claro, às 4h em ponto. Muitas pessoas foram até a praça ver o que se passava.
 
A nave tinha cor azul-clara. Uma luz branca e gelada pulsava no interior. Possuía seis escotilhas distribuídas circularmente na parte superior. Uma espécie de tubo de alumínio projetou-se até o centro da praça, ao lado do chafariz. Alguém começou a descer por ele num estreito elevador. Era um homem vestindo macacão preto com um distintivo cor de prata no lado esquerdo do peito. Havia no símbolo coisas escritas em caracteres indecifráveis.

Saiu do tubo e disse que queria falar com a autoridade local. Imediatamente buscaram Don Sigofredo. O filósofo aproximou-se levemente arqueado, com a bengala, o terno preto, cabelo e cavanhaque brancos e bigode torcido para cima nas extremidades.

- Boa-tarde, a que devemos a honra da visita - disse Don Sigofredo ao viajante do espaço, com ar de quem já vira coisas suficientes nos Campos de Cima do Esquecimento e não se deixava mais impressionar.

O alienígena retirou os óculos muito grandes. Só então se percebeu que seus olhos eram enormes, do tamanho de uma bola de tênis, e a testa muito maior que a humana.

- Desculpe-nos chegar dessa maneira, sem aviso. Recebemos a missão de vir a este lugar buscar um dos seus que pretende conhecer a nossa civilização. Somos do planeta FAJ 376, da constelação Rio Erídano, interior da galáxia espiral NGC 1637, a 35 milhões de anos-luz do seu planeta.

- Ora bem. Quem é a pessoa que quer nos deixar para ir tão longe, poderia nos dizer?

- Sou eu, Don Sigofredo - disse uma voz na entrada na praça. Era Claudionor, o Anacoreta, que trazia o alforje ao ombro, a longa túnica branca com botões brancos abotoados até o pescoço.

- Fiz contato com esta civilização após anos de meditação. Conversamos com o pensamento. Depois do primeiro contato, Palomar Boavista me ajudou com seu telescópio a localizar no céu a espiral NGC 1637. Eles me convidaram para uma viagem. Vou mas pretendo retornar um dia.

- Que maluquice é essa, menino, sair por aí assim?- interpelou aflito Don Sigofredo. E sua velha mãe, e nós? 

- Não vá, Claudionor - disse uma mulher que se aproximou ofegante entre as magnólias. Era Mocita.

- Claudionor, por favor, não - continuou ela. Temos muito que conversar. Não quero mais viver longe de ti. Queria ir dizer isso lá na tua caverna. Eu sei que faz muito tempo. Mas isso assim não é vida. Quanto tempo perdido, quanta vida morta por nada! - exclamou, enquanto lágrimas escorriam dos seus olhos.

- Peço perdão a todos, mas tenho de partir. Faz parte de um projeto espiritual. Quero conhecer esta civilização que é muito desenvolvida. Vou te levar no coração, Mocita. Nunca te esqueci.  Peço que olhem por minha mãe enquanto estiver fora.

- Senhores, temos que ir - disse o viajante do espaço. São 35 milhões de anos-luz!

- Não vá, Claudionor. Não desista de nós - insistiu Don Sigofredo.

O visitante olhou para Claudionor e ambos entraram no tudo, que se fechou e retornou com ambos à nave. De uma escotilha, Claudionor acenou lá de cima.

A nave distanciou-se um pouco e, em seguida, transformou-se numa grande centelha dourada que disparou pelo céu e desapareceu.

Alguns meses depois, o pombo-correio dos Capuchos do Perpétuo Amanhecer trouxe um recado de Dom Eleutério. Dizia que recebera uma mensagem de Claudionor informando que estava bem no novo lugar. Um mundo diferente. Mas nem tanto.

- Não era bem o que ele esperava, pois lá também há extratos sociais, inclusive com privilégios de classe.  Apesar de tudo está aprendendo e é bem tratado. Pretende, sim, voltar a Passo dos Ausentes, mais cedo do que se imagina. Anunciou, por fim, que no dia 6 de julho de 2014, às 21h, enviará um sinal até nós pelo cosmos.

No dia marcado, ou melhor, naquela noite, nos reunimos no jardim das camélias da Sociedade Histórica à espera do sinal. Na hora designada, um longo fio de luz amarela projetou-se desde o infinito em direção a Passo dos Ausentes.

O raio luminoso passou sobre a cidade clareando tudo e retornou ao desconhecido de onde viera, desfazendo-se em segundos.

Um suavíssimo aroma de jasmim ficou no ar por alguns minutos.

Então tivemos certeza de que Claudionor voltará um dia.  
 

ilustração: Maria Machiavelli

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Crônica do trem fantasma

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto

 
O trem noturno avança noite adentro. Antigamente era esperado por todos com grande ansiedade em Passo dos Ausentes, nas noites de sexta-feira.
 
Que trem será esse que escuto agora, se já não há trilhos, se o mato tomou conta dos dormentes da velha estrada de ferro?
 
Escuto-o passando ao longe com suas pesadas rodas de aço. Faz um túnel na neblina e espalha a fumaça branca em direção às estrelas.
 
O vetusto trem trazia jornais, cartas, viajantes, mercadorias, animais e até fantasmas. Vinha desde Porto Alegre, subia a Serra entre pinheiros e penhascos, atravessava pontes.

Quando chegava nos Campos de Cima do Esquecimento, não tinha mais fôlego pra nada após se arrastar pelas encostas das montanhas, contornando abismos.
 
Que traz esse trem que escuto nas entranhas do vento? 

São fantasmas que retornam para tomar posse de seus lugares à mesa das casas abandonadas. Seus apagados rostos procuram espelhos, os calados passos vêm em busca de corredores.

Ouvimos de suas bocas o longo e melancólico silêncio do nosso desamparo.
 
Enquanto estou na cozinha, bebendo café com leite e comendo um pedaço de pão com manteiga, ouço o trem noturno deslizar sobre trilhos invisíveis às quatro da manhã.

O vento de fins de novembro açoita a solidão.
 

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

O lavrador de Ipanema

Jorge Adelar Finatto
 
Rubem Braga. fonte: divulgação

Não, esta crônica não pretende salvar o Brasil. Vem apenas dar testemunho, perante a História, a Geografia e a Nação, de uma agonia humilde: um córrego está morrendo. E ele foi o mais querido, o mais alegre, o mais terno amigo de minha infância.*

                                          Rubem Braga

Quando vou a Porto Alegre, costumo visitar uma livraria que tem, logo na entrada, uns caixotes com livros em promoção. Descobri esse espaço não faz muito tempo e o incluí no meu roteiro literário.
 
Nos caixotes há centenas de volumes e é preciso ter paciência e tempo para garimpar. Eu tenho. O prêmio pode ser um livro daqueles de não se esquecer e a preço encorajador nesses tempos difíceis. 
 
Da última vez em que lá estive, a sorte estava comigo. Encontrei um livro que considero uma preciosidade editorial. Trata-se de uma edição primorosa de crônicas de Rubem Braga (1913-1990), versando sobre o seu amor à natureza. Intitula-se O lavrador de Ipanema.
 
É uma antologia recente (2013), organizada com visível carinho e esmero por Januária Cristina Alves e Leusa Araujo. O belo projeto gráfico tem a autoria de Leonardo Iaccarino. Capa dura, papel excelente, tipo de letra, cores e diagramação impecáveis. Mesmo um sujeito com grossas lentes como eu sente-se à vontade diante das páginas.

A sensível e esclarecedora nota editorial é feita pela escritora e editora Guiomar de Grammont. Pra completar, povoam o volume belas ilustrações de Andrés Sandoval.
 
É o tipo de livro que todo escritor gostaria de fazer. Um livro que é, ao mesmo tempo, uma jóia. A edição está à altura dos textos do Príncipe da Crônica, como o chamava o editor da revista Manchete, Adolfo Bloch.

capa e duas das ilustrações. fonte: site Editora Record

A extraordinária beleza das crônicas, sua simplicidade e seu conteúdo humanista nos levam para esta ilha de felicidade que só a leitura proporciona. É o que eu sinto ao ler e reler os 14 textos que compõem a obra.
 
Rubem Braga é um clássico da crônica em língua portuguesa. Faz parte da seleta estante onde figuram autores que deram dignidade e relevo ao gênero, tais como Machado de Assis, Alvaro Moreyra, Drummond, Nelson Rodrigues e José Carlos Oliveira, entre outros.

Com ternura e sem ostentação, o escritor revela-nos histórias sobre plantas, pássaros, rios, córregos, matas, cidades e pessoas, chamando a atenção para a conflituosa relação homem-natureza. Assim fazendo, humaniza-nos. É bastante conhecido o fato de que transformou o terraço da cobertura onde vivia em Ipanema, na cidade do Rio, numa plantação de árvores frutíferas e outras plantas.

Rubem Braga foi amigo e defensor da natureza muito antes dos movimentos ambientalistas. É o escritor comprometido com a vida. Trabalha com poucas palavras, mas com tal riqueza, elegância e força expressiva que acaba fazendo de cada crônica uma obra de arte.

O autor conseguiu, com seu humanismo e maestria de artesão, extrair das palavras aquilo que elas podem dar de melhor.
 
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*O lavrador de Ipanema, Rubem Braga. Trecho da crônica Chamava-se Amarelo (págs. 78/83). Editora Record, Rio de Janeiro, 2013.
Leia também sobre Rubem Braga: A borboleta amarela
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/01/a-borboleta-amarela.html
  

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O passarinho de óculos

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto, 23/11/2014

 
Tem um passarinho que usa óculos entre os que costumam vir comer frutas nos potes da sacada do escritório. Ele pousa no galho pensador da caneleira diante da janela e fica ali descansando, pensando na vida com aqueles oclinhos. Esse aí da foto é um irmão dele que apareceu à tardinha querendo saber se ele estava comigo. Não, o meu amigo já tinha ido embora.
 
O passarinho de óculos é solitário. Ele não anda em bando como os outros. Às vezes, quando se demora por aqui, vêm seus irmãos e o levam pra casa antes que fique tarde. Ele só pode voar quando o dia ainda está bem claro. 
 
Um dia ele saiu do ninho sem os óculos. Foi um desastre. Voou em linha reta, sem desviar dos obstáculos, deu de cara em alguns deles. Caiu vários tombos. Os irmãos tiveram de resgatá-lo e levá-lo de volta para o ninho. Em casa foi advertido por todos da família de que não podia sair a voar sem os óculos, onde já se viu.
 
Em certos dias, o passarinho entra no escritório. Aos pulinhos, ele vai pelas estantes, sobe nos livros, no antigo rádio de válvulas. Gosta também de ficar dentro do balaio de vime e olha tudo em volta com curiosidade.
 
O passarinho de óculos é azulzinho como o céu depois de um dia de chuva, um azul claro, lavado.

Ele sabe que é diferente, e não só porque usa óculos. Também sente o mundo com lentes de aumento. Às vezes queria ser como os outros pássaros, que andam por aí aproveitando o ar e as árvores, sem se preocupar com o sentido da vida.
 
Quando tira os óculos, é como se entrasse numa outra dimensão. Uma neblina suave envolve as coisas, os contornos se confundem, as cores se dispersam. Fica tudo diferente, engraçado. Parece até um sonho. 
 
O maior medo do meu amigo é um dia deixar de enxergar o mundo. Como poderia voar de bengala? Não, melhor nem pensar nisso. Poder olhar e sentir todas as coisas, não existe nada mais bonito.

A gente voa dentro de si mesmo no fim das contas. Os melhores voos acontecem no espírito. 
 

sábado, 22 de novembro de 2014

A tal perfeição

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 
Eu tento me livrar da cachaça da perfeição. Quero abandonar esse vício triste. Como todo vício, ele se afeiçoa a nós de um modo visceral. Ou então somos nós que nos apegamos a ele como uma criança se apega aos brinquedos coloridos de uma pracinha de bairro.
 
Deve haver um caminho do meio entre a impossível perfeição e a pachorra. 
 
A perfeição do mundo está em não haver perfeição alguma. Necas de pitibiriba, como se dizia antigamente. Tudo nasce meio torto, guenzo (essa palavra também é de antanho, como a palavra antanho).

Não existe a mulher perfeita nem seu correspondente masculino. Não há obra de arte tocada pela perfeição.
 
Estou entre os diletos filhos da ignorância. Alguém que vive atrás de livros como se eles tivessem alguma resposta sobre as questões fundamentais da existência. Não têm.
 
No máximo, o que os livros nos dão é o prazer da leitura, a beleza do texto, emoção de uma história ou poema, distração. Informação e conhecimento, mas isto ainda não é sabedoria. Uma boa parte do que se lê é depois esquecida no sótão. A memória se encarrega de dispensar o que não é importante.
 
Quando eu era menino, vivi a ilusão de que os livros tudo sabiam e tudo podiam. Até a morte e o esquecimento eles seriam capazes de revogar. Neles se concentrava, aos olhos do menino, a essência da sabedoria, da bondade e do imaginário da humanidade, acumulada durante milênios.
 
Depois vim a entender que não era bem assim. Conheci pessoas sábias que nada sabiam de livros. Tinham a sabedoria adquirida da experiência de vida, da capacidade de observação e de discernimento. Um saber proveniente não só da mente, mas sobretudo do coração, capaz de compreender a natureza humana.
 
Salomão, filho de Davi, é considerado um dos homens mais sábios que já existiram, se é que não foi o mais sábio de todos. Quantos textos terá lido inscritos em papiro e pergaminho? Um, dois, dez? Contudo, com a sabedoria que Deus lhe deu, governou o reino de Israel, o mais próspero e resplandecente de seu tempo, durante 40 anos, entre 1037 e 998 antes de Cristo.

Disse Salomão: "De se fazer muitos livros não há fim, e muita devoção (a eles) é fadiga para a carne". (Eclesiastes 12:12)
 
Isso não significa negar importância aos livros, a própria palavra Bíblia significa coleção de pequenos livros (os 66 livros que a compõem). Mas a sabedoria está longe de limitar-se a eles. Há outros fatores como a capacidade de pensar e de agir, a fé, a bondade, o esforço em busca de harmonia e justiça.
 
A tal perfeição não existe. A presunção de ter a verdade absoluta é um perigoso caminho que pode conduzir à intolerância, ao fundamentalismo e até ao terrorismo. Como seres imperfeitos, podemos ter partes do conhecimento. Só Deus tem toda a verdade.
 
Imperfeitos e carentes somos. Viver nunca é ensaiado, é apresentação única e definitiva. Viver é sério demais. Difícil suportar tanto peso se não temos o dom da perfeição. Chega uma hora em que temos que rir um pouco disso tudo.
 
É preciso distrair-se de si mesmo, viajar para longe da angústia, esquecer problemas e dramas. Não somos perfeitos e, no entanto, viver nos exige muito e cobra o tempo todo. 
 
É preciso levar a alma a passear nos campos e montanhas, dar-lhe ar puro, chuva e sol, cor e cheiro de natureza, ruído de córrego correndo sob o azul.

Ninguém sabe nada. A condição de aprendiz diante dos mistérios da vida ainda é a que melhor nos acode. A perfeição é só uma palavra em busca de sentido.
 
(Enquanto escrevo, o sino da pequena igreja, entre as árvores, começa a bater, é fim de tarde. O som de um sino (de metal ou bambu) é música espiritual. Deve haver sinos espalhados pela Via Láctea, badalando no ar, para encher com sua melodia os terrenos baldios da solidão.)
 

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A palavra

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto, 18/11/2014
 
Eu não costumo me queixar da vida. Primeiro, porque não adianta muito. As pessoas estão muito ocupadas com seus próprios problemas, não há tempo para parar e ouvir o outro. Se matar não vale a pena. A gente tem que trabalhar honestamente pra tentar melhorar as coisas.
 
Mesmo num país com a tibieza moral e ética do Brasil, principalmente nas altas esferas de poder, ainda é possível procurar um lugar ao sol sem roubar nem pisotear os outros.
 
Não me queixo, antes de tudo, porque tenho muito mais razões para agradecer.

A vida é difícil, todos sabem, mas para alguns exagera nas tintas. Tem gente que não consegue coisas como ter um trabalho, uma família, uma casa, alguns sonhos tornados realidade. É só dureza, sem cor, sem literatura. Mas enquanto se está vivo tem-se de buscar sempre.
 
Eu não reclamo, raro leitor, só tenho a agradecer. A Deus e a pessoas generosas que encontrei pela vida, que me ajudaram a ser, a crescer. Pensando bem, não foram poucas. Pensando bem, o mundo tem muita gente que vale a pena. 
 
Mesmo nos momentos mais duros, escuros, uma luz sempre se acendeu na estrada. Sou grato.
 
Nunca posso perder de vista esta palavra: gratidão. Está no Aurélio: gratidão (do latim tardio: gratitudine), substantivo feminino. 1. Qualidade de quem é grato. 2. Reconhecimento por um benefício recebido; agradecimento, reconhecimento.
 

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Os sem-leitor

Jorge Adelar Finatto 

fonte da photo: jornal Público, Portugal


Existe um ser cada vez mais raro na face do universo.

Astrônomos passam as noites em claro, mirando os telescópios para o desconhecido, na incansável busca.

No momento em que traço essas linhas, inúmeras expedições científicas partem pelo cosmo à procura dele.

É quase tão belo como a estrela da manhã. É mais luminoso que a aurora boreal. É mais precioso que o mais raro diamante.

Por causa dele, blogueiros do mundo inteiro invadem as noites oferecendo seus serviços. Impressionantes editores perdem o sono à sua menor lembrança.

O ser em questão - o misterioso - é o senhor da lista dos mais vendidos, o sonho dos famélicos e maltrapilhos fazedores de livros. Por ele, Cervantes e Thomas Mann foram às vias de fato, Dom Quixote e Hans Castorp romperam relações.

Macunaíma, Anjo Malaquias e Urutu Branco não trocam mais e-mails. É o início do fim dos tempos, ou quase isso.

Os cafés literários perderam o sentido sem a poderosa presença do desaparecido.

As livrarias estão repletas de musas e personagens desempregados. Seria cômico, não fosse o fim de uma era.

Onde andará aquele que é a razão do meu trabalho?, perguntam-se miríades de escritores e poetas, na fria solidão.

A Academia Sueca devia criar o Prêmio Nobel de Leitura, em homenagem a ele, o inefável.

As noites de autógrafos, hoje, só são bem-sucedidas quando é ele quem assina os livros, enquanto os autores esperam a vez na infinita fila.

Não vereis dele mais que o fugidio vulto esgueirando-se no labirinto dos blogs e soturnas bibliotecas.

No entardecer de ontem, cerca de 150 bardos - entre maus, razoáveis e bons - cometeram suicídio no cais de Porto Alegre. Sob o olhar aterrorizado das mães e gritos desesperados das musas, os suicidas foram ao fundo do rio com grossos volumes amarrados ao pescoço.

Mais de mil caravelas estão partindo a essa hora de Lisboa em busca de um rastro do indizível em alto mar.

O impensável está acontecendo.

Escritores enlouquecidos batem-se em sangrentos duelos nas praças e ruas da cidade.

As últimas notícias dão conta de que livros famintos estão atacando e devorando escritores. Invadem seus locais de trabalho e, com requintes de crueldade, cometem o bárbaro crime.

Aproveitam-se da solidão literária das vítimas, que começa no ato de criar e se estende até o texto sem leitor, e as destroçam.

Depois só restam folhas brancas, embebidas em sangue, espalhadas no chão.
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Texto revisto, publicado neste blog em 12 de fevereiro, 2010.

domingo, 16 de novembro de 2014

Vive-se

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto


Vive-se. Do jeito que dá. Às vezes, até mesmo sem nenhum jeito se vive.
 
Porque a única coisa realmente urgente e importante é manter-se respirando. O resto é o que vem depois. E o que vem é neblinoso, imponderável, se administra. Ou não.

Convivemos com a dor, a falta de amor, de encanto, de beleza, de dinheiro, a falta eterna de sentido das coisas. Enquanto isso, vive-se.
 
Vive-se em Porto Alegre, em Paris, em Sierre, em Lisboa, em Cacique Doble. Vive-se no silêncio de Rarogne e de Passo dos Ausentes. Vive-se à beira do Arroio Tega e nas cercanias do Castelo de Muzot.

Vive-se em toda parte. Principalmente, no fim do mundo.

Vive-se em secreto e em surdina, com raros, distantes amigos. Mas vive-se.

Vive-se apesar da corrupção que assola o Brasil e destrói tudo o que se tenta construir e até o que não se construiu como a floresta Amazônica e a Mata Atlântica.
 
O mais que se faz é viver, raro leitor, apesar de tudo. De janeiro a janeiro. Com sol e com chuva. Com alhos e bugalhos. Vive-se.

Calma, a realidade não merece o teu suicídio.

Vive-se na sexta, no sábado e, eventualmente, no domingo. Segunda é um enigma que nem a filosofia, nem a poesia e muito menos a astronomia conseguiram resolver. Mas o fato é que se vive.
 
Vive-se apesar do lixo na rua, do odor nauseante de combustível na cidade, do esgoto escorrendo impune para o rio.

Vive-se em que pese o velho, malcheiroso, insuportável e persistente racismo.

Vive-se olhando os veleiros que fogem para o mar.
 
Vive-se diante do olhar atônito das crianças abandonadas.

Vive-se a nostalgia das casas sem eletricidade.
 
Vive-se sem embargo dos livros não lidos. Vive-se não obstante todos os livros lidos.

Vive-se com as folhas secas do outono nos bolsos do velho casaco e na palma das mãos.

Vive-se sem nada a perder e mesmo depois de perder tudo.
 
Vive-se sabendo que nunca mais se encontrará aquela mulher para pedir-lhe um olhar, um abraço. 
 
Vive-se de mal a pior, sem eira nem beira.

Vive-se apesar dos mortos nos olhando dos retratos, dos lugares vazios na mesa.

Vive-se a vida invisível dos anônimos, dos solitários, dos desmemoriados.

Vive-se de passagem, uma única vez, com o coração doendo entre as mãos. Mas vive-se.
 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Enquanto a morte não morre

Jorge Adelar Finatto

 
photo: j.finatto

 
Tinha que haver um jeito de trancar a morte no porão, deixá-la encerrada no escuro pra sempre, até virar pó, como ela gosta de fazer com as pessoas.
 
Prisioneira do porão, sem nenhuma fresta de luz e ar, a morte nunca mais poderia matar ninguém. 
 
Morta a morte, estaríamos livres, de uma vez por todas, do grande vexame que é morrer. Morro de pena de quem vai perder a vida, isto é, todos nós. O certo talvez é ninguém mais morrer. Mas que sei eu.

Só que pra todo mundo viver era preciso não existir a maldade que existe no ser humano.

Nenhum homem e nenhuma mulher jamais souberam explicar esse mistério que é deixar de viver. Dizem alguns que a morte dá sentido à vida, o que eu duvido muito.

A morte alimenta-se da morte alheia e não há nela sentido algum.

O que dá sentido à vida é a própria vida.
 
A morte é um buraco escuro dentro da escuridão. Às vezes um monte de cinzas que se espalham ao vento e ninguém sabe onde vão parar. 
 
Eu queria encontrar uma maneira de matar a morte. Depois passaria o resto do tempo infinito ocupado só em viver.

Morrer é um péssimo hábito que herdamos dos antepassados e do qual não conseguimos nos libertar.
 
Para os agnósticos e os céticos, depois da morte é a treva absoluta. Não creio.
 
Enquanto a morte não morre, gosto de pensar que haverá ressurreição para aqueles que não fizeram barbaridades com os outros. E vou vivendo.

Mas eu sou apenas um sujeito simplório. Alguém que acredita na claridade absoluta.
 

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Cantiga de mar e vento à moda de Camões

Jorge Adelar Finatto
  
photo e barco: j.finatto

"Saudosa dor, eu bem vos entendo" *
Luís de Camões

Navegar é despedir-se um pouco cada dia.
 
No mar da terrível procela, vinha eu no meu desditoso barco, enfrentando a fúria sem compaixão do trovão, do raio, do vento e da melancolia.
 
Vinha pelejando nas altas ondas contra a dor e o pó do esquecimento.
 
Só eu e meu coração à mercê de tudo que fere a alma e endurece o tempo. 
 
A bordo da frágil nau do sonho me lancei ao mundo. Entre feros e mortais penedos, procurei descortinar-vos, Açores e Madeira, nos rigores do profundo oceano. Mas nada encontrei, só mais abismo, medo e desengano.
 
O tenebroso rugido da ventania arremessava as vagas contra tão despojada embarcação.  
 
Triste fado meu que fez de mim o solitário do rochedo.
 
De repente, no horror da tempestade desumana, vi surgir na polpa salgada, álgida e insana das águas o brilho marfim e rosa de um búzio. A custo recolhi-o. 
 
Escutei então aquela voz que de longe vinha.
 
Era a voz da minha amada que por encanto eu ouvia. Uma voz moça e já extinta.

Queria saber de mim, onde eu andava, com quem estava, o que fazia. Imaginava se eu ainda sorria. 
 
Disse-lhe que não fizesse cuidado do vazio em minha alma. Eu era só mais um barco seguindo em meio à solidão do grande mar, desviando a fraga imensa. Era tudo o que em mim havia.
 
Quisera nunca ter perdido do seu abraço a moradia, musa minha que partiste mal surgia a aurora em nossa vida.
 
Viver pra mim, hoje, é despedir-se um pouco todo dia.
 
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*Lírica. Luís de Camões (1524-1580). Verso do poema Cantiga (2), p. 28. Editora Itatiaia e Editora da Universidade de São Paulo, 1982.
 

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A canção do efêmero

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
O jardim explode em pétalas, aromas, caules, ramos e cores em novembro dos prodígios.

As flores que aparecem na capa do blog por esses dias são do jardim aqui de casa. Nessa época são muitas e variadas, de rosas a orquídeas, de belas e humildes hortênsias a ternos e sorridentes gerânios, sem falar nas primaveras, nas cerejeiras, nos copos-de-leite e tantas outras.

Nunca, como neste ano, a flora caseira esteve tão iluminada. Uma celebração de vida e de fecundidade. O jardim canta a canção do efêmero: tudo nele é transitório. Mas há, também, no seu território, um contínuo renascer.


photo: j.finatto

Sinto-me bem ao conviver com as flores, ao observá-las, fotografá-las, ao aspirar-lhes o perfume suave.

É uma espécie de terapia floral o querer bem a esses seres tão passageiros, generosos e delicados.

As flores do meu jardim renascem todos os dias com a promessa e a esperança das novas seivas. Que seja assim também em nossas vidas.

photo: j.finatto
  

sábado, 8 de novembro de 2014

Eduardo Salavisa e a viagem no quotidiano

Jorge Adelar Finatto


Eduardo Salavisa. Elevador da Glória, Lisboa
 
Eduardo Salavisa é um “desenhador do quotidiano”, conforme define o título do seu blog.¹  Descobri seu trabalho através do jornal Público², um dos mais importantes de Portugal, que reproduz a página do autor na edição da internet.
Num determinado lugar seleciona as figuras,  perscruta a luz, as cores, as formas, os tons, os significados, a vida escondida. Munido com as ferramentas de trabalho (cadernos, lápis, canetas, tintas, etc.) constrói sua arte impregnada com as coisas do dia a dia.
Um desenhador do cotidiano é alguém que habita a realidade, busca-lhe sentidos, nuances, beleza. Não se ausenta da experiência de viver, pelo contrário, vai para o ambiente físico e espiritual onde a existência acontece. Ali as pessoas vivem e tecem suas histórias.
O talento do artista leva-nos a percorrer com ele os caminhos por onde anda (que não são poucos). Seus passos desenham trajetos pelas ruas de Lisboa, a cidade natal onde vive, mas não ficam só ali, deambulam pelo planeta afora.
 
Eduardo Salavisa. Aqueduto das Águas Livres, Amoreiras, Lisboa


Ele enche cadernos e cadernos em cada saída de casa, em cada viagem. É um viajante do mundo. Leva pouca bagagem e muito olhar. O resultado deste inventário minimalista – pequenas coisas, na aparência, no seu traço ganham contornos de grandeza humana – pode ser visto nos desenhos que nos abrem a vista para o invisível, para o não manifesto, para os detalhes que revelam o coração dos seres e objetos.
Eduardo partilha sua arte e seu conhecimento através de aulas, oficinas, palestras e exposições, além dos livros que publica. Experiente no ofício, costuma ser convidado a organizar edições de obras com autores que se dedicam aos diários gráficos.
É o caso do livro "Diários de Viagem 2. Desenhadores-Viajantes", no qual ele coordena 30 viagens de vários desenhadores (pessoas de diversas profissões). Nele participa com um texto introdutório, além de um trabalho que fez sobre uma viagem à Patagônia. A obra será lançada no próximo dia 22 de novembro, em Lisboa, às 18h, no Museu Bordalo Pinheiro.
Conversei com Eduardo, por e-mail, nessa semana (em Lisboa tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente em janeiro deste ano). Fiz-lhe algumas perguntas e as respostas ilustram essa atividade que, para nós, no Brasil, ainda é uma novidade.

- Eduardo, o que é um diário gráfico e desde quando esta forma de expressão existe?
 
Eduardo Salavisa

O caderno de desenho tem uma longa tradição. Conhecemos os de Leonardo da Vinci, onde apontava as suas observações e reflectia sobre elas. Quando os jovens aristocráticos europeus faziam a viagem de iniciação, chamada “Grand Tour”, levavam sempre um caderninho para desenhar o que viam. Todos os artistas, ou pretendentes a serem-no, usam-no. Não só os das artes visuais mas também os da escrita. São suportes transportáveis que se podem usar em qualquer lugar e circunstância. Um apontamento, uma reflexão, um compasso de espera.

O nome Diário Gráfico começou a ser usado por um professor da Faculdade de Belas Artes, falecido em 2009, chamado Lagoa Henriques. Foi ele que fez a estátua de Fernando Pessoa à porta da Brasileira. Para mim ele era melhor desenhador e professor do que escultor. Ele queria que nós desenhássemos todos os dias.

Foi também por isso que comecei a usá-lo com mais frequência. Foi quando quis transmitir aos meus alunos adolescentes quão era bom desenhar. Os adolescentes não têm paciência para nada e o desenho requer alguma. E também tempo e concentração. E se aquele caderno se transformasse num diário, com desenho e escrita, e se eles relacionassem com uma viagem, uma viagem no seu quotidiano, talvez ficassem viciados na observação e no desenho. E alguns ficaram.

E o desenho, para mim, está muito relacionado com a viagem. É preciso disponibilidade mental para se desenhar. E na viagem nós temo-la.

- O que o leitor encontrará neste Diários de Viagem 2? 

Durante a longa viagem que fiz o ano passado pela América Latina desenhei muito e pensei também quais eram as diferenças que havia entre aqueles desenhos, feitos muitas vezes em más condições, e outros feitos no nosso atelier. Quando cheguei, pedi a alguns amigos meus, portugueses e espanhóis, para me descreverem uma viagem com 10 desenhos feitos em cadernos e um texto com o máximo de 1000 palavras.

Esses textos e esses desenhos ajudaram-me a estabelecer cerca de 12 características que os desenhos feitos em viagem têm. Assim, além deste pequeno texto e de 30 viagens feitos por desenhadores-viajantes, temos um outro texto escrito por uma jornalista e escritora de viagens, e de romances, que viveu no Rio de janeiro uns anos: Alexandra Lucas Coelho.

É preciso dizer ainda que dois dos autores não os conhecia pessoalmente e são, para mim, os maiores expoentes nas suas áreas e que, inesperadamente, quiseram participar: Álvaro Siza Vieira, arquitecto, e Miquel Barceló, pintor.

- Existe previsão de um diário sobre o Brasil?

Existe previsão de diários para todos os países, e para o Brasil em particular. Haja tempo e dinheiro.
 

Eduardo Salavisa. Largo do Carmo, Lisboa

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¹desenhador do quotidiano:
http://diario-grafico.blogspot.com.br/
²Público:
http://www.publico.pt/

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Meus amigos

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 
Não esqueçam
de me visitar
nas noites
de inverno
quando o medo
cobra caro
e as feridas
não deixam mentir


insolúvel jogo
de espelhos
entre mim
e o que fui

ando bêbado
pela casa
meu coração
é operário
desempregado
com filho pra criar
mulher feia
sem crédito no armazém

me enrosco
em invenções
inúteis
pra repartir contigo
um espaço de ternura

sinto umas
coisas estranhas
caminharem atrás de mim
um cano de fuzil
um casal de velhos famintos
um câncer
e me desagrada não ser
como certos fantasmas

 
convoco o
silêncio e
suas raízes

inauguro a
manhã

não, eu não sou
uma estrela
um rio
um barco
nada se compara
ao que sinto

preciso todos
ao redor da mesa
principalmente
os desaparecidos
como certos crepúsculos
que a gente vê
fogem e nunca mais


___________
 
Poema do livro Claridade, Jorge Adelar Finatto, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Álbum de Porto Alegre (1860 - 1930)

Jorge Adelar Finatto
 
 
Gosto de livros de fotografia. Podem ser imagens antigas ou atuais. Me interessa a representação da realidade pelo olhar do fotógrafo, pela sensibilidade na escolha dos seres e objetos, pelo que deles extrai em sentido e sentimento.
 
Num dia desses estava na livraria. Como sempre acontece comigo, alguns livros parece que têm um poder secreto de chamar minha atenção entre a multidão de volumes que enchem as estantes. Não tinha naquele dia intenção de pesquisar livros de fotografia, até o momento em que parei, sem razão aparente, diante de uma estante onde estava o Álbum de Porto Alegre - 1860 - 1930.¹
 
Uma obra bem realizada graficamente e com bom conteúdo, entremeando imagens de Porto Alegre daquele período com textos de autores importantes como Alvaro Moreyra (o grande cronista e poeta porto-alegrense, hoje pouco lembrado, que utilizava o delicioso pseudônimo de Arlequim da Silva).
 
Na ocasião não comprei o livro, pois tinha escolhido outros antes e, além disso, o preço era salgado para mim. Mas ali mesmo, de pé diante da estante, li a introdução escrita pela professora de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Sandra Jatahy Pesavento (1946 - 2009). Resumo: poucos dias depois, voltei à livraria e comprei a introdução, quero dizer, o livro.

Sandra Jatahy Pesavento²
 
O texto de apresentação (nove páginas) foi a poção mágica sobre mim, pobre leitor indefeso diante de sua beleza literária e de suas informações. A professora Pesavento transfigura-se em escritora dotada de notáveis recursos. Sintaxe e refinamento de estilo dão-se as mãos e arrastam o legente para o espaço luminoso.
 
Reúne elementos importantes sobre o advento da fotografia e sobre seu significado na vida da cidade. A imagem como registro de diversas transformações ao longo do tempo. Ouçamos por um breve momento o que nos diz a escritora:
 
 (...) a fotografia, enquanto imagem, é rastro, marca e pegada daquilo que foi um dia. (...) se a foto é imagem, e não a coisa ou ser representado, ela é obra do homem, representação do real.
 
Mas - e aqui se revela o seu lado técnico de ser impressão de luz e registro de vida - ela atesta e exibe a presença daquilo que foi, ela presentifica uma ausência. (págs. 8/9).
 
Prefácio, apresentação, introdução, como queiram, mas, acima de tudo, ensaio precioso de alta eficácia literária. A autora nos envolve sedutoramente com sua palavra bem temperada, original e criativa. Mostra-nos o papel da imagem como perpetuadora de um instante que só chegou até nós porque ela existe.
 
O milagre da fotografia a resgatar do oblívio um momento fugaz na vida de uma pessoa, de uma cidade, de um planeta.
 
Uma das melhores coisas que li nos últimos tempos este ensaio da saudosa professora Sandra Jatahy Pesavento, de quem fui aluno quando cursava Sociologia na UFRGS, no final dos anos 1970.
 
Um bom trabalho literário merece leitura e divulgação. Às vezes, como neste caso, uma introdução vale um livro. Saio agora desta crônica e vou continuar apreciando as belas imagens e os outros textos do Álbum.
______________
 
¹Álbum de Porto Alegre (1860 - 1930). Organização: Marcos Lindenmayer. Editora Nova Roma, Porto Alegre, 2007.
²Foto do site Fronteiras do Pensamento.

domingo, 2 de novembro de 2014

Visão

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto


Eu olho as velas brancas
dos barcos que cruzam
as águas escuras do rio

Sentado no banco do parque
eu observo o indescritível
declínio da tarde
sobre o Guaíba

Aqui embaixo do eucalipto
o sangue escorrendo nas veias
os pés firmes na terra
eu acompanho o lento movimento
das águas e do planeta

Estou condenado ao continente
ao monótono traçado das ruas
à intromissão do tédio e do medo

Mas o rio é um caminho
onde a emoção navega
 
_________
 
Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.

sábado, 1 de novembro de 2014

Escutar o outro

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto. 31-10-2014


Escutar o outro é, talvez, a forma mais elevada de sensibilidade.

O mundo está povoado de seres falantes, que só escutam as próprias razões, num monólogo ensurdecedor. Cada vez tem menos gente disposta a ouvir e a refletir, de coração aberto, sobre o que o outro tem a dizer.

O respeito, a empatia, para essas pessoas, não têm voz nem vez. O que vale é ter razão sempre, impor a própria vontade, não importa a que custo.

Somos inquilinos de um tempo que não nos pertence.

Existimos por um momento e depois vamos habitar a memória de Deus (aqueles que creem) ou simplesmente nos esfarelamos e não se fala mais nisso (os que em nada acreditam). A transitoriedade da vida é comum a uns e outros.

Há aqueles, contudo, que vivem como se fossem eternos, como se não tivessem de devolver um dia o seu quinhão de vida. Sentem-se livres e legitimados a executar os próprios desejos e torpezas. O mundo é seu brinquedo.
 
A todos querem submeter e devorar com a urgência dos vampiros (tão em voga, hoje, nas telas). Vivem sem qualquer noção de limite, nenhuma ideia de bondade com o semelhante (e, menos ainda, em relação ao diferente).

Como viver em meio tão hostil e infenso a valores humanos?

De minha parte, estou empenhado em arrumar a casa do ser. Sonho e trabalho, de sol a sol, para mantê-la limpa, com ar fresco e o claro aroma das manhãs. Espero que as pessoas se sintam acolhidas nessa casa simples, com flores da estação na janela.

Sei que é possível ser solidário com o próximo, ainda que o espaço para generosidades esteja cada vez menor.

Todos estamos envolvidos na árdua tarefa da sobrevivência. Mas isso não justifica a violência que vemos no dia a dia, explícita ou dissimulada.

O sofrimento é filho da prepotência, da vaidade exacerbada, da indiferença e da arrogância. Todo exercício arbitrário de poder sobre os outros é perverso.

Podemos viver ao lado das pessoas e não contra elas. Amorosamente.

Enquanto estamos vivos, temos essa bela oportunidade. Não vamos desperdiçá-la.

_________
 
Texto revisto, publicado antes em 29, junho, 2011.