quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A solidão segundo Heitor dos Crepúsculos

Jorge Adelar Finatto 
 

photos: j.finatto


Somos poucos e invisíveis. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento.
 
O outono amadurece nas ruas da velha cidade. É quando, no silêncio de antigos retratos, as imagens ganham vida própria e passam a viver outra existência. Um certo rumor habita o silêncio.

O fantasma-mor de Passo dos Ausentes diz que desistiu de aparecer e desaparecer no ar feito nuvem de neblina. Heitor dos Crepúsculos afirma que o motivo é simples: a canseira que isso lhe dá.

- Materializar-se, desmaterializar-se, não apenas cansa, como é parte de um formalismo que perdeu a razão de ser neste lugar, - declara.

- É um ritual desnecessário em Passo dos Ausentes, onde todos padecem do fenômeno da invisibilidade. A cidade e seus habitantes nem ao menos figuram no mapa do Rio Grande do Sul, - constata Heitor.

O nosso lugar no universo é um mistério.
 
Somos personagens de um mundo em extinção.

A cidade não existe oficialmente, apesar dos inúmeros pedidos nesse sentido feitos ao Estado ao longo do tempo, todos denegados. E, no entanto, somos uma das cidades mais antigas da Província de São Pedro. Surgimos logo depois da destruição da Missão de São Miguel Arcanjo pelos exércitos de Espanha e Portugal. Essa história já abordamos no documento A cidade perdida: as origens, neste mesmo espaço.


As pessoas nada sabem da nossa cultura, das nossas origens, do nosso sentimento, da nossa história.

Vivemos isolados. Em parte devido às difíceis condições de acesso pelas encostas das montanhas. Também influi o fato de sermos uma pequena comunidade com cada vez menos habitantes. Um outro aspecto tem a ver com a indiferença dos governantes e dos meios de comunicação, que só vêem o que lhes interessa.

Simplesmente não nos vêem, não nos conhecem, não nos sentem.

A Sociedade Histórica, Literária, Filosófica, Geográfica, Artística, Geológica e Astronômica de Passo dos Ausentes, presidida pelo filósofo Don Sigofredo de Alcantis, decidiu incluir Passo dos Ausentes na carta estelar da constelação de Atlântida, como forma de melhorar a nossa autoestima. É onde hoje figuramos no universo.

De certo modo Heitor tem razão de abandonar certas formalidades fantasmagóricas na Terra dos Ausentes. Anda pelas ruas como um de nós. Ninguém estranha.

A única norma fantásmica da qual Heitor não abre mão é a que diz respeito a jamais deixar-se fotografar. Isso, segundo afirma, seria expor-se demasiado, até mesmo para um fantasma com costumes e idéias liberais como ele.

O lugar preferido de Heitor dos Crepúsculos, na verdade, são dois.

Um deles é o Café Somos Poucos, um recanto aprazível, com gerânios nas janelas, perto da Praça do Esquecimento. Ali se pode tomar o delicioso cappuccino dos suspiros, acompanhado do inefável sonho do oblívio.

Heitor senta-se no fundo do café. A pequena mesa fica ao lado de uma janela que tem sempre metade da veneziana fechada, a seu pedido.

- Gosto de ficar aqui lendo, é o meu ponto de observação das palmeiras, da estrada de ferro e das ausências que povoam esse não-lugar - observa.
 
O outro lugar de Heitor dos Crepúsculos é a velha estação de trem abandonada. Está desativada desde 1951. A antiga maria-fumaça permanece na gare, como nos tempos dos trens de passageiros. Mas nunca ninguém mais viajou como antes.

Dos Crepúsculos aparece na estação, nas tardes cinzentas, pra conversar com seu amigo Juan Niebla, 86 anos, músico cego que toca bandoneón pra alegrar os invisíveis passageiros que não chegam mais. Niebla, apesar disso, não abandona o cargo público para o qual fez concurso e foi nomeado aos 15 anos, em 1927, ficando cego logo em seguida. Permanece no seu posto aguardando a volta do trem de ferro.
 
- No dia em que o trem voltar a nossa cidade, subindo as íngremes montanhas outra vez, estarei aqui para receber os viajantes - diz ele.

Às vezes, Niebla e Heitor saem a caminhar sobre os dormentes até desaparecer na névoa que aqui em Passo dos Ausentes é permanente. Em certas ocasiões, Heitor faz movimentar a maria-fumaça e eles saem em breves passeios pelo caminho dos pinheiros, na margem sinuosa do Rio da Ausência.


O trem, que nunca mais desceu os temerários paredões de basalto da Serra dos Ausentes, contorna perigosos peraus nas cercanias da cidade, descortinando ao longe uma das mais belas vistas do planeta. O trem fantasma depois volta para seu lugar na estação.

Numa de nossas conversas, Heitor dos Crepúsculos confidenciou o quanto a solidão lhe pesa no coração.

O fantasma gosta de me visitar, nos dias de chuva, no escritório, vestindo o negro capote.

- Como já disse uma vez, um fantasma só se torna fantasma porque ama a vida e não aceita volatilizar-se em definitivo. Sonha a impossível permanência entre os vivos. Sempre me sinto sozinho, o que não é de espantar para alguém que se matou, num momento de bobeira, aos 27 anos. O anoitecer é o pior momento do meu dia. Queria ter sido uma pessoa mais leve, mais feliz, com mais fé. O que se há de fazer?
 
Continua Heitor:

- À noite é quando fica mais escuro dentro da minha alma. Saio a me procurar pelos corredores, escadas e sótãos do meu ser abandonado. Sinto essa falta de ser que sempre me acompanhou. Durmo por exaustão, é como cair num poço. É estranho como certas ausências nos acompanham pela vida e atravessam o umbral conosco.

- A noite me invade e me desconcerta. Esse frio e esse vento me habitam. Vivi, vivo (modo de dizer) no chapadão dos Campos de Cima do Esquecimento. Um tempo sem relógios.
 
- Os dias caem do calendário como as folhas no outono.

- Nasci em Passo dos Ausentes, aqui me criei. O meu melhor amigo sempre foi Juan Niebla. Não me evita como os outros.

Niebla costuma dizer:

"Pra mim, nunca morreste, Heitorzinho. Não sei se és um fantasma como dizem, nessa altura pouco me interessa. Se fores, tanto faz. Sou músico e sou cego, moro nessa lonjura, um pouco fantasma também. O importante é que me visitas. Como vês, aqui na estação tudo é muito solitário. Sou eu, meu bandoneón e este banco. Ainda bem que estás por perto.
 
"Acho que somos todos uns desarraigados neste mundo, uns pobres coitados, cada um traz o irremediável dentro de si, só que uns escondem melhor o desamparo do que os outros."

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Texto publicado em 15 de março de 2010, ora revisto.