sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

A claridade do coração

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


 A trevosa sintaxe da vida. Nas almas a escuridão cativa.

Fugidias imagens me perseguem. Nos urdimentos do bandoneón, busco outras claridades. Viver longe do abismo, no vero amanhecer, eu busco.

Eu, Juan Niebla, venho do neblinoso. Trouxe o calepino?

Tenho andado pela vida à procura de luz. Essa que vem de dentro. A escuridão está por toda parte, principalmente nos corações.

As trevas-mestras sustentam o mundo.

Bem-vindo o que vem em paz e desarmado. Os regulamentos da amizade eu cumpro. A minha casa está sempre aberta ao que chega sem falsidade. Vivo os bons momentos da minha música. Nos enquantos, porque amanhã é escuro no alto e no fundo. Anote, por favor.
 
A treva foi inaugurada com a luz principial.

Isto é demanda antiga lá do céu. A velha contradição, o bem contra o mal. A luta imemorial. Mas também os complementos, um talvez não existe sem o outro. Sei lá o que digo. Estou exausto disso tudo. 
 
Em termos de arriscada filosofia, caminho em beira de precipícios.

A maldade não tem sala na minha casa. Sou músico de bandoneón e antiga memória, na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes.

Espero com o ouvido a chegada do invisível trem. Cego desde os 16 anos, sim, senhor. O resto é o breu e se dissipa quando toco meu instrumento no velho banco.
 
A vida é dura? Pra completar, é breve. Somos um ato-falho da criação.

Sou homem de fé, Deus me perdoe. Se vive. Fazemos o que é possível, às vezes muito menos, às vezes pouco mais. Quase tudo é retórica para o distinto público. Quem nas alheias falas se reconhece.

Somos ferida em carne viva, vivo pensamento. Se vive. Está anotando?
 
O certo é que, na vida como na arte, a gente fracassa sempre. Falta aquele grito, aquela palavra, aquela revolta na hora certa, o remate contra a escuridão, aquilo que não foi dito nem lembrado.

A expressão clara, pura emoção. Os impossíveis.

O ora-veja, em assunto de arte, só a divina obra tem. Deus é artista caprichoso, no atacado e no miúdo, como outro igual não há. Conseguiu escrever?
 
Pediram-me um ensaio falado sobre as cores remotas do outono. Mas eu só sei, só vejo o que sinto.


photo: j.finatto
_____________

Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Admitido por concurso público, ocupa o cargo de músico municipal desde 1943. Toca bandoneón na estação de trem abandonada da cidade. Tem 87 anos, é cego desde os 16.

Texto atualizado, publicado anteriormente em 23 de março, 2011.

Nenhum comentário:

Postar um comentário