quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Dom Segundo Sombra

Jorge Finatto

pintura O Gaúcho, de Nélson Jungbluth.
fonte: Relatório Samrig - Moinhos Rio-Grandenses, 1981-1982
 
Guacho e gaúcho pareciam-me o mesmo, porque entendia que ambas as coisas significavam ser filho de Deus, do campo e de si mesmo. 
Dom Segundo Sombra, p. 228

Voltando de Cambará do Sul, no meio de muita chuva e frio, num setembro da vida, resolvi entrar em São Francisco de Paula para tomar um café com bolo na Livraria Miragem, um bom lugar para se encontrar não só livros como objetos de artesanato, além de bom atendimento.
 
Retirei da estante o livro Dom Segundo Sombra¹, do escritor argentino Ricardo Güiraldes (1886-1927), publicado pela primeira vez em 1926. Trata-se  de um clássico da literatura latino-americana, saudado por gente como Jorge Luis Borges.

O que foi decisivo para que o levasse para a mesa do café e, depois, para casa foi ver que o tradutor do espanhol para a última flor do Lácio, inculta e bela² era ninguém mais nem menos do que Augusto Meyer (1902-1970), notável escritor, intelectual e pesquisador porto-alegrense.
 
Comecei a ler enquanto bebia café e comia a inefável fatia de bolo da casa, seguindo-se um refrescante hidromel. O livro me pegou pela cabeça e pela emoção.

Ao ler Dom Segundo Sombra, nos transportamos para a vida dos tropeiros de antigamente, que trilharam os caminhos da formação da identidade do gaúcho, atravessando as grandes solidões do pampa argentino montados em lombo de cavalo, levando gado de um lado para outro. Mas não só gado: notícias, histórias, amizades, saudades, um modo de estar na vida. Aqueles homens levavam no íntimo uma visão de mundo temperada pelo sofrimento, pela dignidade e pela coragem.

A vastidão do silêncio impregnava seus gestos.
 
A história se passa em um cenário em que eles estão expostos a tudo, unidos no duro ofício. Nas difíceis andanças, sob chuva e sol, o horizonte parece ficar cada vez mais longe à medida em que avançam na marcha. Nesse ambiente hostil ao conforto, no qual o convívio social se dá por exceção, a figura feminina aparece em segundo plano. Os cavalos são os imprescindíveis companheiros de travessia. Güiraldes mostra, neste contexto, a iniciação de um jovem na áspera lida rural.


capa da primeira edição³

O jovem é Fábio Cáceres, meio sem eira nem beira no mundo, sem saber direito qual sua origem, perdido na bruma da falta de memória familiar, um guri abandonado, guaxo (isto é, que não tem mãe ou que dela foi separado ainda na amamentação. A. Meyer utiliza a grafia guacho, como no espanhol). Um sobrevivente num universo primitivo mas não destituído de grandeza humana.
 
Dom Segundo Sombra é um homem escuro, forte, andarilho, sozinho como muitos naquelas paragens e naquele tempo, resumido no modo de ser, habituado à ironia cevada daqueles que, como ele, passam a existência trabalhando para proprietários rurais donos de quase tudo. Homem, todavia, a quem a ternura não abandonou e para quem a liberdade se funda no possuir-se, e não no possuir, no feliz dizer de Leopoldo Lugones (1874-1938), no artigo que apresenta o livro.

Dom Segundo carrega muitas histórias, mistérios, saberes da terra, num viver que é a cristalização da imagem do trabalhador do campo. Nesse viver e nos códigos que o norteiam está a raiz da nacionalidade argentina. Uma espécie de protopersonagem, assim como o Martín Fierro de José Hernández (1834-1886). Ele traz uma sabedoria de longínqua origem, de vertente indígena. Sabe lutar como poucos, mas o uso da violência não faz parte do seu modo de ser e resolver as coisas.
 
O encontro do menino Fábio com Dom Segundo Sombra é determinante para ambos. Um resgate de sentidos em meio à solitude de espaços vazios que se perdem em confins.

A vida gira constantemente e muitas vezes se tem a impressão de que não chega a lugar algum. Talvez só a afeição humana possa nos salvar do desaparecimento na sombra opressiva do tempo.
 
Dom Segundo Sombra, o gaúcho por excelência, povoa o ambiente com sua observação aguda da vida e sua bondade, e não nega ensinamentos, conselhos e o contido afeto a Fábio, o qual deixa de ser um desamparado guaxo. Nasce entre eles uma amizade profunda com a marca da cumplicidade e do respeito que só o sentimento de gratidão e a admiração são capazes de criar.
 
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¹Dom Segundo Sombra, Ricardo Güiraldes. Tradução de Augusto Meyer. L&PM Editores, Porto Alegre, 1997.
²verso de Língua Portuguesa, poema de Olavo Bilac.
³photo do Museu Güiraldes, Argentina.
http://www.sanantoniodeareco.com/parque-criollo-y-museo-gauchesco-ricardo-guiraldes
 

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