quarta-feira, 31 de julho de 2013

Visita ao cemitério de Père-Lachaise, Paris

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Père-Lachaise, Paris


Um leitor pergunta-me, por e-mail, o que, afinal, um escritor genial como Balzac (1799-1850) ia fazer no cemitério de Père-Lachaise em Paris. Refere-se ao post de ontem (29/12/12), no qual escrevi que o grande romancista francês costumava freqüentar aquele lugar para meditar e realizar no local o que denominou "estudos de dor".


photo: j.finatto.Túmulo de Proust com carta e vaso de flor

Admirou-se, também, o raro leitor, pelo fato de eu ter passado um dia - um domingo - pesquisando, anotando e fotografando no tal cemitério: "O que pode haver de tão interessante num lugar assim? Não revelará esse gesto certa tendência mórbida do temperamento do cronista?", arrematou.

photo: j.finatto. Túmulo de Oscar Wilde em reforma, acima e embaixo (e os beijinhos)


photo: j.finatto

Não posso falar por Balzac, mas acredito que, atento observador como era, capaz de ir a minudências que passam despercebidas da maior parte dos mortais, as horas vividas no cemitério serviram-lhe de precioso material existencial e reflexivo para escrever sua obra.

Nada como a morte para chamar-nos à vida.

Uma certa melancolia ancestral habita o meu sangue, admito. Esse é um traço anímico de quem nasceu em Passo dos Ausentes como eu. Ninguém vem ao mundo impunemente aqui nos Campos de Cima do Esquecimento, entre gélidas névoas.


photo: j.finatto. Túmulo de Balzac

Mas ainda não chego ao ponto de fazer excursões a cemitérios por causa disso. Longe de mim! A morte é, entre os fatos naturais, o que me causa maior aversão e desgosto. Não existe entre mim e ela amizade ou encantamento possível.

Visitar cemitérios, portanto, não é um passeio que, de regra, me agrade, pelo contrário. Além disso, procuro sempre evitar tais visitas, pois, como diz aquele sábio ditado popular: "quem não é visto não é lembrado".


photo: j.finatto. Túmulo da escritora Colette

Uma visita ao Père-Lachaise tem valor cultural. É um giro pela história da arte e da cultura. E uma visão impressionante da transitoriedade de tudo nesse mundo. O destino final de todos os esforços, caprichos, alegrias, dores, sacrifícios, preocupações e vaidades.

Ali estão os túmulos de alguns dos principais artistas, escritores, filósofos e cientistas que marcaram a trajetória humana. As inscrições tumulares dão alguma notícia do que fizeram. Na portaria, o interessado pode pegar um impresso com o mapa das sepulturas contendo informações sobre os ilustres falecidos.


photo: j.finatto. Túmulo de Gilbert Bécaud

Também é possível observar a reação das pessoas diante da morte de personagens famosos (e outros nem tanto), os estudos de dor, de que nos fala Balzac. Cartas, bilhetes, livros, flores, velas, objetos diversos são colocados nos túmulos.

Mas nenhum dos habitantes do Père-Lachaise é alvo de tamanha manifestação de afeto como Oscar Wilde, cujo túmulo foi coberto por marcas de beijos com batom ao longo do tempo. Sobre o assunto escrevi Oscar Wilde: o beijo proibido.*


photo: j.finatto. Père-Lachaise

Estão sepultados no Père-Lachaise, entre tantos: Chopin, Édith Piaf, Yves Montand, Proust, Jim Morrison, Paul Éluard, Sarah Bernhardt, Maria Callas, Isadora Duncan, Allan Kardec, Camus, Gilbert Bécaud, Molière, Champollion, Modigliani, Pissarro, Dalacroix, Max Ernst e por aí vai. É um panteão a céu aberto. Vale a pena uma visita (não recomendável para pessoas impressionáveis).


photo: j.finatto. Père-Lachaise
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Oscar Wilde: o beijo proibido:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/12/beijo-proibido.html

Fotos de novembro de 2011.
Texto revisto, publicado antes em 30.12.12.

domingo, 28 de julho de 2013

T.S.Eliot, Deus e as coisas boas da vida

Jorge Adelar Finatto

photo: T.S. Eliot
 

Uma carta do poeta T.S. Eliot (1888-1965), publicada na edição de julho deste ano da revista Serrote (nº 14), que acaba de chegar às livrarias, evidencia a religiosidade de um dos grandes autores do século XX. Nela o escritor considera Deus uma presença fundamental em sua vida.

Eliot nasceu nos Estados Unidos (St. Louis, Missouri) e fez brilhante carreira literária na Inglaterra, adotando a cidadania inglesa em 1927. Por sua obra, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1948.

Num tempo em que o ateísmo ou a desconsideração de Deus é pensamento dominante nos meios intelectuais, a manifestação de Eliot, um dos grandes poetas de língua inglesa de todos os tempos, escapa ao "intelectualmente correto", abordando sem reservas sua crença.

Fugindo da concepção que nega a existência de Deus, ou que sequer leva o assunto em consideração (como se fosse coisa de indivíduos ignorantes e pouco dotados mentalmente), Thomas Stearns Eliot afirma sua fé com convicção, de forma tranqüila, sem pretender impô-la a ninguém.
 
A carta foi escrita em 18 de setembro de 1927, um domingo à noite, tendo como destinatário Geoffrey Faber, escritor e editor, fundador da editora Faber & Gwyer (depois Faber & Faber), para a qual Eliot trabalhou durante muitos anos.

Publicada na Serrote com o título As coisas boas da vida, traz o entendimento do poeta no sentido de que a apreciação das coisas boas da vida depende do alcance de cada um, do grau de bondade de cada um, "minha própria apreciação (...) é intensificada por minha consciência de Deus", e acrescenta:
 
"Por exemplo, se alguém toma as relações humanas (ou, ainda, melhor, a relação homem/mulher) como seu maior bem, afirmo que isso acabará em desilusão e engano. Mas se duas pessoas (digamos um homem e uma mulher que mantêm uma grande intimidade) amam Deus ainda mais do que um ao outro, então ambos desfrutam maior amor um pelo outro do que se não amassem a Deus.

"(...)  O amor de Deus substitui o cinismo, o qual, de outro modo, é inevitável em qualquer pessoa racional, pois as relações com amigos e amantes, apartadas do amor de Deus, sempre, em minha experiência, acabam em desilusão e engano. Ou as pessoas o decepcionam, ou você as decepciona, ou ambos: nenhuma relação humana é, em si mesma, satisfatória" (p.238).*
 
Não me recordo de ver a questão de Deus colocada de forma tão lúcida e clara no âmbito das relações humanas. Não imaginava encontrar semelhante visão a um só tempo existencial e espiritual no autor do belo poema A terra devastada, traduzido no Brasil, com excelência, por Ivan Junqueira, com o título de A terra desolada, no livro T. S. Eliot, Poesia (com introdução e notas), Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.

O tema é particularmente importante nos dias de hoje, quando tanto se despreza a dimensão da espiritualidade na vida das pessoas, preferindo-se o indivíduo isolado no egoísmo, separado dos outros, valendo por si, contra tudo e contra todos, sem limites na busca de prazeres e bens materiais.

Não vou tirar o prazer do leitor de ler na íntegra a carta nas páginas da Serrote, de ruminar e extrair suas conclusões. Trata-se de um rico documento. Digo apenas que, por mim, a revista poderia ter apenas esse texto e já estaria plenamente justificada. Mas tem muito mais. É ler ou ler.


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O crédito da photo de T.S. Eliot será dado tão logo conhecida a autoria.
* Tradução de Thiago Lins
 

quinta-feira, 25 de julho de 2013

O gato no escritório

Jorge Adelar Finatto

 
photo: j.finatto
 

Anda comigo, vai onde eu vou, dorme e acorda a meu lado um gato invisível. O pelo azul claro e brilhante ofusca quando o vejo caminhando ao sol. Os dentes afiados, brancos, aparecem na intermitência do bocejo. O gato nasceu no mesmo dia em que eu nasci e nunca mais me abandonou. Gosta de ficar sentado na janela da minha solidão.
 
Não é um gato de raça conhecida. É um tipo que não se encontra nos livros nem no google. Ele apenas está por perto, sua presença é como a extensão da minha sombra.
 
Às vezes, quando me distraio, ele some no ar. Se começo a pensar na passagem do tempo, no sumidouro do calendário, na vida por levar, nos problemas sem solução, ele torna a surgir numa mansidão de fazer inveja. Costuma deitar sobre o tapete do escritório, ao pé das estantes. Enquanto me esfalfo trabalhando ele ronrona.

Como os gatos em geral, o meu gato é muito silencioso. Toda vez que tento pegá-lo ele desaparece e surge noutro lugar. Não se deixa acariciar. Não come, não bebe leite nem água. Raramente mia, e quando o faz é um miado infantil. O bichano não caça mas às vezes sonha que está correndo e pulando atrás de coloridas borboletas pela casa.

Não sei se alguém enxerga o meu felino. Não costumo conversar sobre isso, porque é difícil falar de um ser como ele. Muitos dirão que estou inventando (a falta de imaginação está acabando com a graça das coisas). Alguns só acreditam naquilo que podem tocar, comprar e levar pra casa, em nada mais.

O mundo materialista em que se vive virou as costas para o invisível. Esse é um dos problemas da humanidade. As pessoas perderam a fé. A maior parte das coisas que valem a pena não se vê e não se toca. Alguém já pegou um sentimento com as mãos? E, no entanto, não existe nada mais forte e real.

Ninguém, em tempo algum, conseguiu segurar na mão uma única cor do arco-íris. Muitos quiseram, eu mesmo tentei várias vezes, mas não tem jeito. O raio de luar é uma coisa branca, suave como uma seda que ondula ao vento, mas ninguém põe a mão.

E os sonhos só se entregam a quem busca algo além da realidade tangível. Quem sonha habita um mundo que ainda não existe, mas que poderá vir a ser.

O meu gato faz parte desse universo invisível e essencial. Tem uns olhos amarelados e miúdos. E deixa na casa, e dentro de mim, um gosto morno de infância e novelo de lã.
 

terça-feira, 23 de julho de 2013

A breve carreira militar

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 

A - este é o nome do nosso singelo personagem - foi reprovado no exame físico do Exército. Era na década de 1970, em plena ditadura militar. Alguém teve a infeliz idéia de mandar que tirasse os óculos. Depois que os retirou, passou a ouvir vozes e enxergar vultos. Aquele período de dois dias no quartel foi o tempo que durou a carreira militar de A.
 
Na verdade, ele queria ingressar na Marinha do Brasil. Os filmes de pirata e de guerra naval haviam plantado este sonho em seu imaginário. Sempre gostara de aventuras pelos mares do mundo. Mas um amigo disse-lhe que se ele se alistasse na Armada teria de permanecer pelo menos cinco anos, longe de tudo e de todos. Por mais que quisesse ser marinheiro, isso estava fora de cogitação.
 
A imagem mais marcante que guardou na memória de sua célere passagem pelo Exército foi a do encontro entre um oficial e os dispensados numa sala. O militar olhou-os com desalento. Perguntou o que achavam que deveria ser feito com eles.

A quase maioria respondeu que estava preparada para fazer o serviço militar. Era sem dúvida um pelotão de bravos. O oficial disse, então, com delicadeza, que o certo era colocá-los dentro de um caminhão e depois atirar todos dentro do Guaíba.

Houve um certo desconforto entre os intrépidos guerreiros.
 
- Vocês não servem pra nada. Vão embora antes que eu me arrependa e chame o caminhão.
 
A voltou desanimado para casa, para a insossa vida civil que o aguardava (tinha só 18 anos). Voltou sem uniforme, sem divisas, sem histórias pra contar e sobretudo sem a admiração dos amigos de rua. Voltou, enfim, como partira, apenas um cara comum, sem eira nem beira, com a vida por levar num país injusto, esculhambado e violento, sem perspectiva para gente como ele.
 

domingo, 21 de julho de 2013

Os buquinistas de Paris

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto. Catedral de Notre-Dame

Jamais me senti solitário nas margens do Sena.*
Ernest Hemingway

Um passeio interessante, em Paris, pra quem gosta de livros, é sair a pé pelas margens do Sena. Gosto de começar na altura da Notre-Dame em direção ao Museu do Louvre, com tempo para ir parando nas bancas de livros dos buquinistas (bouquinistes), os conhecidos vendedores de livros usados.

photo: j.finatto

Eles são muitos e estão instalados ao longo dos muros nas margens do rio, com suas bancas de cor verde. Dizem alguns que eles estão ali desde o século XVIII.

photo: j.finatto
 
Os alfarrabistas da beira do Sena fazem parte do cartão-postal da cidade. Seu pequeno comércio de livros velhos, cartazes e souvenirs habita a paisagem parisiense e se apresenta ao olhar atento ou distraído de qualquer pessoa, nativo ou turista. Em geral são gentis e há até aqueles que gostam de uma conversa à toa, dessas que fazem a gente se sentir em casa. Outros não toleram aproximações e censuram com veemência quem pára para tirar uma fotografia do local.

photo: j.finatto

O que se procura no buquinista? Ora, vamos ali buquinar, verbo que, no Aurélio, significa procurar livros em sebo, catar obras literárias, muitas delas fora de comércio. Uma busca que, às vezes, rende preciosidades. Um bouquin (livro) raro, talvez.

photo: j.finatto

Numa caixa encontrei e comprei um pequeno e encantador exemplar do livro Une Saison en Enfer (Uma estação no inferno), de Arthur Rimbaud, publicado em 10 de fevereiro de 1945, pela Mercure de France, trigésima primeira edição. As 90 páginas estão já um tanto amarelecidas, mas em bom estado. A capa está coberta por um delicado e fino plástico incolor. O antigo proprietário tinha um carinho especial pelo volume. Sabe-se lá as estantes que percorreu até chegar no caixote verde. Um achado.

photo: j.finatto

Por essas e por outras, vale a pena passar uma tarde na beira do Sena, sem pressa, intercalando a missão de explorador literário com um cappuccino e uma baguete, na mesa de um aconchegante café, na calçada de preferência, se não fizer muito frio.

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*Paris é uma festa. Ernest Hemingway. Tradução de Ênio Silveira. Editora Bertrand Brasil, 15ª edição, 2011, Rio de Janeiro.
Texto revisto, publicado antes em 03 de maio, 2012.
 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

A rebelião dos guarda-chuvas

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto

 
Um fato incomum aconteceu em Passo dos Ausentes.

Revoltados por viver na zona sombria do esconso, os guarda-chuvas da nossa pequena aldeia reuniram-se em assembléia na Praça da Ausência. Decidiram protestar flutuando sobre os telhados do casario antigo. Depois foram-se pelo céu azul em alegre bando.


photo: j.finatto
 
O blog procurou um dos líderes do movimento, Ernesto Chuva Fina, que nos recebeu no banco da Fonte dos Esquecidos. Segundo afirmou, os conjurados deliberaram aproveitar os dias de azul profundo como esse (em pleno julho invernal), a fim de arejar o pensamento, o corpo e o espírito.
 
- A questão é simples -, disse ele: - guarda-chuva também é gente. Mas o povo só se lembra de nós nos dias maus, de relâmpago, trovoada, frio, chuvarada e ventania. Por que nunca nos fazem um agrado?

Prosseguiu Chuva Fina:

- O que custa sair com a gente num dia lindo como hoje para aproveitar a fresca e o bom tempo? Mas não. Nos dias belos nos deixam fechados, molhados, pendurados, enterrados e amargurados numa lata cilíndrica ou num cabide. Queremos um pouco de vida na nossa vida. Na verdade, queremos muito mais vida.


photo: j.finatto

E concluiu:

- Por que será que a felicidade dos outros incomoda tanto algumas pessoas?
 
A bela sombrinha Mariana Gota Dágua afirmou que não há prazo para o fim da rebelião:
 
- Por certo não queremos um prazo determinado para ser feliz. Prazo é coisa de gente rígida, impermeável, tosca, avessa às belezas e levezas da vida. Nós vamos é curtir. Enquanto houver dias azuis, ficaremos na rua. Ou mehor, nos ares e nas praças, que é onde gostamos de passear e nos divertir. Podemos ser muito engraçados e brincalhões, sabia? Temos humor, coisa que as pessoas deste lugar perderam faz tempo.


photo: j.finatto
 
E saiu flutuando a jovem Gota Dágua, reunindo-se ao bando na maior felicidade.
 
Como em grande parte do ano faz frio, chove, venta, neva e neblina aqui nos Campos de Cima do Esquecimento, os moradores estão preocupados com os desdobramentos do movimento guarda-chuval. O guarda-chuva é artigo de primeira necessidade entre nós.



photo: j.finatto
 
- Temos de nos acostumar aos novos tempos. Assim como o povo, os guarda-chuvas também resolveram parar de esperar por dias melhores e foram à luta nas ruas (e pelos ares). Eles têm seus motivos e devemos respeitar seus sentimentos, declarou ao blog Don Sigofredo de Alcantis, filósofo, presidente da Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Agnóstica,  Astronômica, Antropológica, Mística, Antropofágica, Ecológica, Pantagruélica e Artística de Passo dos Ausentes.

 E a vida segue.

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Fotos tiradas na cidade de Canela, Rio Grande do Sul, inverno 2013. 

terça-feira, 16 de julho de 2013

Postal do fim do mundo

Jorge Adelar Finatto

Vale do Olhar. photo: j.finatto


O sol mal aparece entre as nuvens nesses dias glaciais de julho em Passo dos Ausentes. Através da janela, a silhueta azulada das montanhas na profundidade do Vale do Olhar. Um cartão-postal do fim do mundo, esse lugar onde Deus descansou os pincéis, as tintas e as ferramentas, deu por encerrados os trabalhos, e pôde enfim admirar a sua maravilhosa obra.
 
O inverno abre gavetas no escritório em busca de uma luz escondida. Encontro entre os papéis um desenho antigo. É um riacho correndo sob o céu azul com pinheiros nas margens. Sentada num tronco caído, com um chapéu de palha, uma mulher pesca. Perto dela, um cachorro e uma bicicleta. Um pouco acima, uma ponte de madeira une as duas margens do córrego.

magnólia. photo: j.finatto

Há uma serena alegria na face dos personagens que habitam o retrato. Agora quase todos flutuam (invisíveis) no ar como figuras de uma pintura de Marc Chagall.

O inverno deixa a solidão das coisas a descoberto. Procuro um sopro cálido de luz nas anotações esquecidas no fundo da gaveta.

magnólias. photo: j.finatto

Ando pela casa atrás de mim, faz tempo que não me encontro.

Talvez esteja no sótão olhando o céu com o telescópio, à espreita de um habitante engraçado num planeta distante. Talvez tenha ido ao porão conversar com os fantasmas. Talvez adormeci na poltrona, afundado no grosso capote azul, diante da janela, esperando a primavera.

camélia. photo: j.finatto

Em certos dias na vida, só a presença das camélias e magnólias é fonte de alegria e inspiração.

A sagrada alegria de um jardim cultivado com mãos de afeto.
 

domingo, 14 de julho de 2013

O homem que roubou o sol

Jorge Adelar Finatto

pintura: Maria Machiavelli


Um homem de coração triste pode entristecer a vida de muita gente.
 
O sol está preso no sótão da casa do homem sem esperança.

Em uma manhã de infinita tristeza, ele ergueu os braços, apanhou o sol com as duas mãos, como se fosse uma laranja, e o levou para o trevoso lugar. Desde então, não mais o devolveu para a rua onde mora.
 
- Nunca, nunca mais vou soltar o sol -, disse a um grupo de meninos e meninas que foram até a frente de sua porta pedir a libertação do astro-rei.

- Ninguém mais vai ver a luz nem receber calor nessa rua.
 
À noite, os vizinhos observam a estranha claridade que escapa pela claraboia. Raios iridescentes giram entre si, perpassam o espaço e vão em direção ao vazio do universo.

Nenhum, no entanto, fica para iluminar aquele pequeno lugar mergulhado na sombra.
 
O homem triste tem uma pedra enorme, pesada e fria, no coração. Uma lápide com uma inscrição feita numa estranha, obscura língua que ninguém entende. Ele não consegue mais falar nem sentir.

O roubo do sol foi um ato de desespero, de revolta com coisas más que aconteceram na sua vida. Ao agir dessa maneira, privou a rua e seus habitantes de luz, alegria e esperança.
 
É preciso trazer urgentemente de volta o homem triste para o convívio da rua, antes que tudo em volta dele congele, antes que os corações sequem, antes que desapareça a vida daquele lugar.
 
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Maria Machiavelli é artista plástica em Passo dos Ausentes onde mantém ateliê e ensina, às terças e quintas, gratuitamente, técnicas de pintura. 
Texto revisto, publicado antes em 12 de setembro, 2011.  

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Basquiat, um iluminista das cores

Jorge Adelar Finatto

pintura de Basquiat. nome: Skull (caveira), 1984
fonte: Wikipédia

O raro leitor, assim como eu, não está interessado em estatísticas inúteis. Isso não nos afeta, a vida tem coisas mais urgentes e belas com que se ocupar. O que queremos é o texto e a foto que nos dêem algum prazer, uma pequena alegria.

A leitura de um blog tem que ser como a passagem por uma ilha sossegada durante o dia: um breve momento de solidão, leitura e descanso, onde nada nos incomode.

Uma coisa, porém, chama a atenção e quero compartilhar. O texto mais procurado aqui no blog, desde sempre, é aquele sobre Basquiat*, que nunca sai da coluna dos mais lidos. É disparado o que tem mais acessos, o que desperta o maior interesse nas pessoas, não só do Brasil como de outros países. Isso revela, no mínimo, o grande interesse que o artista desperta.

Um dia me impressionei com os grafites de Jean-Michel Basquiat nas ruas de Nova Yorque e, depois, com suas pinturas nas galerias. A juventude do artista, a sua temática urbana existencialista com raízes africanas, a rapidez, a angústia e a urgência de seu traço febril são algumas das características de seu trabalho que me levaram a escrever.

Jean-Michel Basquiat. photo em preto e branco.
autor: James Van Der Zee. fonte: site de Basquiat*

Ninguém consegue ficar indiferente ao seu talento, que apareceu primeiro nas ruas, com a exposição de sua arte nos muros e paredes. Não havia moldura nos grafites figurativos, a moldura era a cidade. Quando decide sair de perto da família, antes dos 20 anos, sobrevive vendendo camisetas e postais na rua, que nessa época foi sua casa. Esse tempo não durou muito: foi veloz a transição entre a pobreza e a fama, entre o nada e o reconhecimento.

O grafite, a arte humilde das ruas, passageira como os caminhantes nas calçadas, perecível ao sol, ao vento e à chuva, é, longe da pichação, a ocupação do vazio, do não-lugar, do espaço do mal, através do impulso vital que se faz lirismo e expressão, em meio à dureza da existência nas cidades. 
Basquiat foi um espírito iluminista no final do século XX, vivendo no asfalto e em seu ateliê, à sombra dos grandes edifícios, em meio a ruídos de máquinas, veículos e fumaça.

Nos seus grafites, ele promove a subjetivação do espaço público, as paredes dos prédios ganham a cor lilás, o amarelo leva sua alegria, o vermelho, sua raiva, revolta e paixão, o azul, a paz provisória, a tristeza assume mil tons.

Autorretrato, 1982. fonte: site oficial do artista**

As coisas aconteceram depressa demais na vida do artista. Morre de overdose de heroína, precocemente, em agosto de 1988, aos 27 anos. Nesse curto período, produziu muito, consagrou-se no meio artístico, foi amigo e trabalhou com Andy Warhol, namorou Madonna antes de ser famosa, e muito jovem, quase um menino, tornou-se uma celebridade.

Basquiat é um parente distante de Tintoretto, com a mesma pressa e violência da composição, e um irmão mais novo de Van Gogh, que, à semelhança do gênio holandês, libertou as cores do seu coração nas ruas da mais universal das cidades do mundo, dando-lhes sentido e sentimento.

Por tudo isso, e em homenagem à sua arte, fico contente que seja tão procurado neste modesto espaço.

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*Basquiat, anjo caído
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/11/basquiat-anjo-caido-expoe-em-paris.html
**Site oficial do artista:
http://www.basquiat.com/index-new.htm
A ortografia utilizada no blog é a atual (e antiga), que continua ainda em vigor juntamente com a norma do destrambelhado acordo ortográfico (sobre o qual já nos manifestamos).

segunda-feira, 8 de julho de 2013

O homem e o rio

Jorge Adelar Finatto

Passeio sobre prancha, no Guaíba, diante da Fundação Iberê Camargo.
photo: j.finatto
 
Devia ser eu em cima daquela prancha (stand up), deslizando sobre as águas do Guaíba na tarde de julho. Na verdade, acho que era eu. Sentia o cheiro adocicado do rio enquanto glissava de pé sobre a superfície azulada, cortando as pequenas ondas em direção ao sul.

Se não era eu, como explicar o toque do vento batendo no meu rosto, aquela sensação incrível de liberdade?

Devia ser eu, tinha de ser eu. Pelo menos era o que imaginava, sentado no café da Fundação Iberê Camargo, diante do Guaíba, no intervalo da visita que fazia às exposições de pintura.

Um sentimento de felicidade por estar ali, mergulhado naquela aquarela. A vista da cidade desde o ponto ondulante era de não esquecer.

Porto Alegre vista de uma janela da FIC
photo: j.finatto

Devia ser eu naquela prancha, orientando o remo, olhando a face fugidia da cidade.

A tarde de sol cálido convidava pra ser feliz olhando o Guaíba e seus reflexos.

Recordo do tempo em que, na altura da Usina do Gasômetro, centro de Porto Alegre, havia uma praia onde as famílias se reuniam nos fins de tarde de verão com suas esteiras e guarda-sóis coloridos.

Lembro dos dias ali vividos e de como nos banhávamos nas águas do Guaíba. Às vezes, tinha vontade de embarcar num navio e sair pelo mundo. Sim, navios de várias bandeiras entravam e saíam do porto naquele tempo.

Beira rio. photo: j.finatto
 
O homem da prancha desafia a lógica da cidade nas últimas décadas, que é ficar de costas para o rio. O homem da prancha vem nos lembrar que existe um rio e que é bom manter contato físico com suas águas. O homem da prancha desperta em nós, que estamos à margem, a vontade de deixar o rio fazer parte de nossas vidas outra vez.
 
Por isso é tão importante não perder tardes azuis de inverno. É isso que me digo enquanto olho a cidade abraçada pelo seu rio.
 
Diante do Guaíba, perto do entardecer, esse momento é um convite ao pensamento criativo, ao olhar interior, à integração com a cidade e seu ambiente, à construção de sentidos.

Viver é agora.


Árvore diante da FIC, na beira do Guaíba.
photo: j.finatto

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Iberê Camargo:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/03/ibere-camargo-e-escrita-da-solidao.html

O retrato de Iberê:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/03/o-retrato-de-ibere.html


 

sábado, 6 de julho de 2013

Por quem choras, Maria Filipa?

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Amsterdam

 
Por quem choras, Maria Filipa?

Quem mastigou teu coração e depois cuspiu no fundo das águas?

Estás ainda sentada à beira do canal, na tarde de outono, em Amsterdam?

Me olhaste com os olhos mais tristes do mundo. Passageiro efêmero no barco casual, numa cidade distante e povoada de ausência, eu nada fiz naquela hora.

Eu estava de passagem entre um cais e outro, um canal e outro, um deserto e outro.
 
Devia talvez ter me jogado nas águas turvas na tarde de domingo. Nada era mais importante do que ir ao teu encontro.

photo: j.finatto.

Devia ter ficado o resto do dia contigo, em silêncio, ali naquele banco, sem nada esperar. Exceto talvez passar e receber um pouco de consolo.

A cara de anjo, o capuz azul da solidão, os olhos mais tristes do mundo, me olhavas.
 
Da minha solidão eu te acenei.
 
Foi tudo que fiz dentro do barco. Por um instante tuas lágrimas diminuíram e teu olhar me seguiu. Depois tua cabeça caiu sobre o colo outra vez, onde as mãos pálidas repousavam.

O barco sumiu sob as pontes atravessadas pelos ventos de novembro. Eu dentro dele.
 
Entre dois cais, entre dois nadas.
 
photo: j.finatto
 
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Texto revisto, publicado antes em 16 de outubro, 2012.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Ortega y Gasset e as Meditações do Quixote

Jorge Adelar Finatto

photo: José Ortega y Gasset

Cada dia menos me interessa sentenciar; a ser juiz das coisas vou preferindo ser seu amante.
Ortega y Gasset, Meditações do Quixote*
 
Procurava há muito tempo o livro Meditações do Quixote (Meditaciones del Quijote), do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955). Trata-se de uma das principais obras de filosofia do século XX. Nela, o autor concebe um novo filosofar, um pensamento espiritual voltado ao dia-a-dia das pessoas. Os horizontes de uma nova maneira de pensar (e sentir) a existência estão abertos nesta obra.

"Um filosofar que nos faz cúmplices de nossa circunstância; que começa por descobrir a verdade sob as plantas de nossos pés, conciliando o universal com o ponto de vista de cada um; obrigando-nos a guardar estrita fidelidade à nossa personalíssima vivência das coisas, se quisermos ingressar no mundo dos valores. Meditando despretensiosamente sobre o amor, sobre um passeio no bosque, Ortega nos conduz, sem percebermos, aos meandros de toda uma teoria da realidade e do conhecimento, de toda uma metafísica, que seria conhecida, mais tarde, como a metafísica da razão vital.", está dito, em bela síntese, na apresentação do livro.

Eu sou eu e minha circunstância, ensina o filósofo em suas Meditações (pág. 52).

A minha procura foi, durante anos, infrutífera. Adquiri e li outros volumes de Ortega y Gasset, um filósofo que parece falar direto ao coração e não apenas à razão, para quem a filosofia é a ciência geral do amor (pág. 43).

Um pensador, enfim, que consegue falar língua de gente. Faltava-me justamente o primeiro livro, o de estréia, Meditações do Quixote, publicado em 1914, quando o autor contava só 31 anos!, e que se tornou clássico.

Num dia de março passado, estava na livraria que costumo freqüentar em Porto Alegre. Resolvi fazer novamente a famosa pergunta: acaso teria as Meditações do Quixote? A moça consultou o oráculo eletrônico. Até que veio a inefável resposta: posso pedir para nossa sede em São Paulo, lá temos um exemplar, e é único. Fiz a reserva imediatamente, ela telefonou na minha frente solicitando para separarem e mandarem o livro. Quase não acreditei que chegara o dia.

Dias depois voltei para buscar a encomenda. Com ele nas mãos, ainda no balcão, um cidadão surgiu do nada, aproximou-se com olhar de corvo, dizendo que o compraria de mim pelo preço que eu quisesse. Pensei em dar a única resposta cabível no caso: sai daqui, urubu! Todavia, me contive.

- Não é possível. Este livro vai ser doado para a biblioteca de Passo dos Ausentes, assim que eu terminar de ler. Não há dinheiro nisso. Há amor, paixão intelectual, e muitos anos de espera.

Só depositei o exemplar sobre a mesa do café da livraria quando ele sumiu da minha vista, qual nuvem negra. Conheço o tipo, são capazes de qualquer coisa, todo cuidado é pouco...

photo: j.finatto

Comecei a folhear a obra com o prazer que só esses momentos reservam. Com espanto verifiquei o ano da edição: 1967. Mas como? Sim, o volume hibernou em insondáveis desvãos por quase 50 anos até chegar em minhas mãos.

A livraria em questão não trabalha com livros usados, era exemplar novo (velho embora), nunca tivera um dono. Dormiu por décadas o sono das páginas fechadas. Habitou estantes, viveu esquecido, fez uma longa viagem de São Paulo a Porto Alegre, sem sequer sonhar que seu destino seria morar um dia em Passo dos Ausentes.

São misteriosos os caminhos que nos levam a um livro raro. Nesse caso, como em outros, a persistência e a esperança me valeram.

Pra completar, a obra é comentada pelo também filósofo e notável estudioso do pensamento de Ortega y Gasset Julián Marías.

Gosto tanto do livro que não sai mais de perto de mim, está comigo aonde eu vou, no escritório, na mesa de cabeceira, dentro do alforje, nas caminhadas polifônicas e em viagens. Andamos pelo mundo juntos agora.

A filosofia de Ortega y Gasset é amiga da claridade, amiga das pessoas, amiga da vida. Um pensamento solidário com nosso estar no mundo, sem saltos mortais na obscuridade e no desespero. Seus mares e céus profundos guardam tesouros de luz.

Diz o autor nas páginas iniciais das Meditações:

- O amor é um divino arquiteto que baixou ao mundo - segundo Platão, "a fim de que tudo no universo viva em conexão". A inconexão é o aniquilamento. O ódio fabrica inconexão, isola e desliga, atomiza o orbe e pulveriza a individualidade. pág. 38 

- Não pretendo que esta atividade seja reconhecida como a mais importante do mundo; considero-me justificado perante mim mesmo ao advertir que é a única de que sou capaz. O afeto que a ela me move é o mais vivo que encontro em meu coração. Ressuscitando o lindo nome que usou Spinoza, eu o chamaria amor intellectualis. Trata-se, pois, leitor, de ensaios de amor intelectual. pág. 35

- Vai, pois, fluindo sob a terra espiritual desses ensaios, às vezes agreste e áspera, - com surdo, brando rumor, como se temesse ser ouvida demasiado claramente - uma doutrina de amor. pág.36

- Nestes ensaios eu quisera propor aos leitores mais jovens que eu, únicos aos quais posso, sem imodéstia, dirigir-me pessoalmente, que expulsem de seus ânimos todo hábito odiento, e aspirem fortemente a que o amor volte a gerir o universo. pág. 39

Vou saboreando cada frase, buscando alimento no texto do mestre.

Um renascer do espírito é o que encontramos neste livro. Uma filosofia que nos leva ao encontro da vida ao contrário de nos esconder dela.

Uma celebração da palavra bem escrita, bem pensada, bem sentida, comprometida com o homem no mundo (o seu mundo), e não perdido entre as estrelas, embora com elas sonhando. Ler estas Meditações do Quixote, e levá-las em conta, é uma vigorosa experiência de vida.

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*Meditações do Quixote. José Ortega y Gasset. Comentários por Julián Marías. Livro Ibero Americano Ltda. Tradução de Gilberto de Mello Kujawski. São Paulo, 1967.
 

segunda-feira, 1 de julho de 2013

A parte da orquídea

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto


A parte da beleza e da justiça que não se distribui, a parte do calor e da ternura que não se dá e nem se recebe, a parte dos sonhos extraviados na travessia, a parte do amor não vivido, essa é a parte da orquídea.
 
O que ficará desse tempo seco?

Levo no bornal o calepino, o lápis, as anotações estelares, o telescópio, o lampião, o impossível mapa, a máquina de fotografia. Vou em busca da orquídea.
 
Encherei os olhos, o coração, com suas cores, forma e raro aroma. No limite do penhasco, ou no velho tronco da beira do córrego, sob a sombra da nuvem ou da copa do pinheiro, a orquídea respira e ilumina.

Orquídea, sim, orquídeas.
 
O resto não importa.
 
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Texto revisto, publicado antes em 20 de setembro, 2010.