sábado, 30 de abril de 2011

Fuga y misterio

Jorge Adelar Finatto



Depois das gaivotas, dos barcos e do Guaíba, retornei a Passo dos Ausentes, meu chão no mundo. Na noite de outono, na Praça da Ausência, as pessoas olham o bordado das estrelas com a lua e sentem o perfume branco e azul das flores das quaresmeiras. Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneón na estação de trem abandonada da nossa pequena cidade, apresenta-nos o Primeiro Concerto do Outono. A noite está muito fria, a temperatura caiu aos dois graus, informa o termômetro ao lado do chafariz. Com o capote preto descendo até as canelas, o boné de lã com as abas caindo sobre as orelhas, sentado numa cadeira de palha, Niebla executa peças de Astor Piazzolla. A abertura foi com Fuga y Misterio, comovente como as restantes músicas do programa.

Umas trinta pessoas estamos diante do coreto da praça onde o músico toca. Cada um trouxe sua cadeira de casa. Alberta de Montecalvino usa o lenço azul claro ao redor do pescoço de gazela; sobre o casaco cor-de-rosa, o camafeu de prata na altura do coração. A grande dama está na primeira fila e não faz questão de esconder as lágrimas, no que é acompanhada por muitos da assistência.

Aos poucos a névoa vai tomando conta do lugar. A luz amarela dos postes de iluminação mergulha na brancura azulada da bruma. Ao final do concerto, Mocita de la Vega sobe ao coreto e entrega um arranjo de rosas amarelas a Juan Niebla, enquanto se ouvem aplausos e gritos de bravo. Claudionor, o Anacoreta, ergue as mãos ao céu em agradecimento.

Quem nos visse reunidos nesse cenário pensaria, talvez, tratar-se de uma página de romance do século XIX. Mas não. Somos seres de carne e osso. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento. Comove-nos a música de Piazzolla, recriada magistralmente pelas mãos de Juan Niebla. Nessa hora aberta, fria e vazante.

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Foto: J. Finatto