sábado, 14 de agosto de 2010

Contra a noite do esquecimento, pela esperança

O Cavaleiro da Bandana Escarlate


Mi Vida com Carlos é, talvez, a melhor produção apresentada em Gramado em 2010. Pelo menos, é o melhor que vi. E não vi tudo. Simplesmente, não consigo passar os dias em salas de exibição e/ou discussão. Falta-me o ar. Portanto, essa é a impressão de alguém que, em certos dias, ficou jogado no quarto de hotel, lendo Juan Carlos Onetti e Cortázar, na frente de uma taça de café, em vez de estar enfiado em salas cheias de gente.

Começo a sentir banzo depois de quinze dias longe do modesto solar onde vivo nas cercanias da Praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre.

Mi Vida com Carlos (Chile, 2009) é um excelente documentário sobre um filho (o próprio diretor, Germán Berger-Hertz) que está em busca do pai, com o qual não conviveu. Motivo: Carlos Berger, advogado e jornalista, foi brutalmente assassinado pela Caravana da Morte de Pinochet, em 1973, logo após a destituição, através de violento golpe de Estado, em 11 de setembro daquele ano, do governo socialista e constitucional de Salvador Allende.

A Caravana da Morte foi uma operação das forças armadas do Chile, desenvolvida em outubro de 1973, para exterminar os inimigos do regime  Pinochet. Através dela, cerca de 72 presos políticos teriam sido assassinados. Os corpos de alguns deles, como o de Carlos Berger, jamais foram encontrados.

É uma história trágica e comovente. Os pais de Carlos eram judeus que escaparam dos nazistas na Europa, vindos da Hungria e da Rússia. Sabe-se que muitos nazistas, fugitivos em 1945, passaram a viver e agir na América Latina,  em países como Chile, Brasil, Argentiva e Uruguai, havendo evidências de colaboração dos foragidos com governos ditatoriais, como o de Pinochet. 

Os Berger constituíram família no Chile, trabalharam, os filhos estudaram na universidade, tornaram-se pessoas produtivas e úteis para a sociedade. Até que o inferno Pinochet se abateu sobre o país. 


Não é um filme sectário, mas a visão de um filho que perdeu seu pai desde sempre (tinha menos de um ano de idade quando Carlos foi morto) e que teve ceifada uma parte de sua vida afetiva e familiar. Seus avós, pais de Carlos, suicidaram-se  alguns anos depois do desaparecimento do filho.  Um tio foi embora para o Canadá. O cineasta e sua mãe tiveram de ir para o exílio. É a experiência de um homem que viu sua família destroçada no terror daqueles dias. Não é pouco.

Germán afirma: "Este filme rompeu o silêncio que imperou em minha família por mais de 30 anos. A razão pela qual o fiz foi só uma: a enorme tristeza que impedia a todos de falar de meu pai" (www.santocine.com).

O documentário colhe depoimentos de amigos, familiares e da mãe do diretor, Carmen Hertz. Ambos estiveram em Gramado na apresentação do filme. Carmen empreendeu, junto com um grupo de pessoas, uma luta corajosa em defesa dos direitos humanos violados pela ditadura sanguinária. O notável trabalho desta senhora e seus companheiros gerou arquivos que foram declarados Memória do Mundo pela UNESCO, em 2003. Há ali registros de mais de três mil pessoas, entre mortos e desaparecidos, vítimas da ditadura do general Augusto Pinochet, que durou entre 1973 e 1990.

A história contada na tela nos ensina que não é possível uma nação seguir adiante sem apurar responsabilidades pelo terror que aconteceu no passado. É o que se buscou e se busca até hoje no Chile, para que esses crimes nunca mais se repitam.

Vou caminhar um pouco na neblina das ruas agora quase vazias de Gramado, antes de arrumar as coisas pra ir embora.

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Fotos: Divulgação.