sábado, 19 de junho de 2010

Adeus, José

Jorge Adelar Finatto


Cada um de nós é por enquanto a vida. 
Isso nos baste.

A morte de José Saramago ontem, 18 de junho, significa a perda de um notável ser humano e o ponto final na trajetória de um escritor essencial do nosso tempo. Neste mundo em que a média de lucidez e sensibilidade é muito baixa , um homem dessa natureza fará muita falta.

O desaparecimento do escritor português, aos 87 anos , na ilha de Lanzarote, situada no arquipélago espanhol das Canárias, onde vivia desde que o governo de Portugal censurou seu livro O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), representa uma dor pessoal para seus muitos leitores espalhados pelo mundo. Todos faziam parte da família espiritual que Saramago construiu através de seus livros, suas posições corajosas contra a injustiça, sua fé na razão  humanista e na solidariedade como instrumentos de luta diante das trevas que inundam o planeta. Foi o primeiro e, até agora, único escritor de língua portuguesa a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998.

Numa época em que se misturam os conceitos de escritor e publicitário, em que o marketing pessoal muitas vezes vem antes do trabalho literário e da consciência do que este representa, José Saramago foi uma notória exceção. Antimarqueteiro por excelência, não se preocupava em atender as demandas e caprichos do mercado. Nele o cidadão andava junto com o criador de páginas belas, densas, simples e memoráveis. Dizia o que pensava e o que sentia . Não tolerava a opressão e a coisificação da vida. Não fugia dos temas polêmicos, a indiferença jamais fez parte de seu modo de ser e escrever. Queria denunciar a iniquidade e a desumanização, e o fazia com  destemor, acendendo e partilhando a boa luz que emanava de seu espírito. 

Esse homem de origem muito humilde, nascido na pequena povoação de Azinhaga, província do Ribatejo, em 16 de novembro de 1922, apontou a irracionalidade de religiões que investem contra a dignidade das pessoas. Criticou Israel na luta desigual, violenta e injusta contra os palestinos, acusou a perseguição movida ao juiz espanhol Baltasar Garzón por querer apurar os crimes cometidos pela ditadura franquista, e insurgiu-se diante de muitos outros atos  de violência.

Terá cometido erros como todos, do contrário não seria gente. Mas o legado literário, ético e humano que deixa para as pessoas de todas as nações é digno de atenção e profundo respeito.

Em sua importante produção, encontramos livros como Levantado do chão (1980), O ano da morte de Ricardo Reis (1988), Ensaio sobre a cegueira (1995), O conto da ilha desconhecida (1998), As pequenas memórias (2006).

O blog que manteve a partir de 2008, intitulado O Caderno de Saramago, na página da Fundação José Saramago na internet, foi mais uma manifestação concreta de grande generosidade e  capacidade de intervenção na realidade.

Tenho um irmão siamês
(Minha morte antecipada,
Já deitada
À espera da minha vez.)

O homem silenciou.

A obra continuará viva entre nós.

Por isso, lhe seremos sempre gratos.

Adeus, José.

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Foto: José Saramago, janeiro de 2009. Arquivo da Fundação José Saramago.
Textos do escritor, em itálico vermelho, extraídos do livro  de poemas Provavelmente Alegria, Editorial Caminho, Lisboa, 1985.