segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O homem e os moinhos de vento

Jorge Adelar Finatto



O homem anda pela rua na tarde de julho. Uma alameda acolhedora no bairro Moinhos de Vento. A temperatura por volta dos 9°. A luz fria do sol de inverno atravessa a copa das árvores, derrama-se na calçada. Nos cafés, os frequentadores conversam enrolados em casacos de lã e echarpes coloridos.

Ele escuta o súbito e belo canto de um pássaro. Quer ver a ave entre os ramos, mas não consegue.

O nosso personagem experimenta, enquanto caminha, um bem-estar físico e espiritual que gostaria que nunca mais acabasse.

Estou vivo, eis tudo, pensa ele.

Existe vida depois do câncer, disse-lhe o médico, quando conversaram sobre as possíveis saídas.

Ele luta para expulsar o medo que insiste em rondá-lo feito trilha sonora de filme de terror. Esse medo recorrente que vem para lembrá-lo que algo ruim pode acontecer nessa tarde perfeita, como um vaso de gerânios ou uma marquise desabar na sua cabeça em plena rua.

Convence a si mesmo que é possível aproveitar o breve encanto de um simples passeio, sem o temor de um desastre iminente.

- O senhor tem alguma dúvida, algo que queira esclarecer nesse momento, antes de iniciarmos o tratamento? - perguntou-lhe o oncologista no dia do diagnóstico.

- Sim, doutor, acho que sim… Será que eu posso tomar um cafezinho depois que sair daqui? - foi a única reação, soltando o nó da gravata, suando a frio, sem conseguir pensar direito, como se estivesse andando no fundo do mar entre os restos de um naufrágio.

Enquanto sorve o café na mesinha de mármore, sob o que resta das folhas de um plátano, percebe que a vida é um milagre, apesar de tudo. Existe magia suficiente no fato de estar vivo, nos detalhes das coisas, nas pessoas que, em geral, são amáveis. Nunca tinha pensado nisso. Seria uma pena interromper a viagem existencial.

O homem que se sentia eterno até três meses atrás agora agarra-se a cada migalha de esperança, a qualquer possibilidade de continuar vivo.

- Eu não agüento mais a dor, meu abdômen vai explodir, chamem um médico -, ele quase gritou no hospital. A canícula ligada à medula levou morfina ao centro da dor.

Eis uma epifania, sentiu ele: a morfina opera a dádiva de tirar a dor. A cama e a roupa estavam encharcadas de suor, mas logo se trocavam, e tudo voltava à calma no quarto.

Como sempre acontecia nessas ocasiões, o seu estado de consciência se alterava, levando-o a falar compulsivamente. A família estranhou, no início, aquele homem falante, que sempre foi muito mais de ouvir do que de dizer, reservado mesmo em casa.

Mas por que recordar isso agora?

Passou a dor, passou, saiu do hospital, tudo passará.

Ele bebe o cappuccino, sente o perfume de uma mulher, a leve nuvem que a envolve. Lá no alto, sem ruído, o risco branco de um avião.

Eis outra epifania: a borboleta azul cruza a rua em direção a um jardim. Nem parece Porto Alegre. São quatro horas da tarde e o sangue continua a correr-lhe nas veias. Esta é a grande notícia que nenhum jornal vai dar. E, no entanto, não existe nada mais maravilhoso.

Pensando nisso, o homem respira fundo, fecha os olhos, sente como é bom estar aqui, agora, longe das injeções, da dor, da angústia, da cama de hospital.

Epifanias são pontes de claridade numa estrada de sombra. É Deus andando por perto. O homem bebe café na tarde fria e sabe que não pretende mais perder nenhum momento de vida. Quer ficar mais tempo perto de si mesmo, das pessoas que ama - Deus, como pude viver tantos anos longe desse afeto -, como nunca antes ousou fazer.

O homem que luta e sobrevive entre moinhos de vento, na tarde fria e clara, não tem a menor idéia de como e por que certas coisas acontecem. Não pretende descobrir as raízes profundas disso tudo nem questionará os oráculos e cientistas a respeito da doença.

Está agarrado à vida, ao corpo cálido e macio da vida, à respiração que o faz flutuar na alameda.

Está vivo o homem na tarde povoada de moinhos de vento. Alguns deles são gigantes reais que o desafiam, outros, apenas belos moinhos a rodar no vento. Não quer esquadrinhar os altos e inafáveis desígnios da condição humana.

Uma conversa sobre o tempo que fará amanhã, sobre o aroma azul e branco das flores da quaresmeira, sobre os belos, humanos e antigos casarões da rua, isso é toda filosofia, toda literatura e toda ciência que ele precisa.

- Não existe certeza sobre o que vai acontecer. Infelizmente, não podemos adiantar muita coisa. Vai depender. Precisamos dar tempo ao tempo. Mas temos de ser otimistas e pensar positivo, - afirmou o especialista.

Ele, que nunca deixou nada pra resolver amanhã, agora tem de aceitar estoicamente a passagem do tempo, conviver com o imponderável, e ainda assim não quer reclamar de nada.

De que servem, a essa altura, todos os anos de estudo, as inumeráveis leituras, os séculos de recolhimento e reflexão, se não encontra respostas mínimas para sua situação?

Passou grande parte da vida tentando resolver os problemas dos outros, que lhe chegavam nos processos. Terá conseguido ajudar alguém? A justiça que sonhou para si e para seus semelhantes terá aflorado alguma vez?

Pensar e sentir, sentir e pensar, esse o caminho que poderá levá-lo a sair do túnel. Durante a travessia ele lutará todos os dias para expulsar as sombras dos gigantes que o atormentam.

Um automóvel pára bruscamente para não atingi-lo, no meio da rua, que ele atravessava distraído. O motorista não o xinga nem buzina. Ele agradece com um aceno. Agora caminha resoluto, não vê a hora de chegar em casa.

Tem um excelente programa para a noite que se aproxima. À beira da estante repleta de livros, sentado no tapete do gabinete, brincará com o filho, jogará bolinha de gude, montará peças de jogos de armar, ficará ali enquanto puder, até que o cansaço o derrube e o faça ir para a cama, onde o espera menos que um sonho, apenas o sono profundo e largo, com o filho agarrado no seu braço de pai invencível.
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O texto se constrói com a recordação do imortal Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616).

Foto: Jorge Finatto

Um comentário:

  1. Adelar essas são as famosas encruzilhadas da vida, onde a crise pode tornar-se oportunidade.
    Momento do salto quântico existencial.
    Não passei por esta, mas por outras e elas, no decorrer do tempo, nos mostram que crescemos interiormente.
    Quanto se tem a dimensão do Humano, estas intempéries da vida ganham uma conotação de um tempo cinzento que, lá adiante, vai dar lugar ao sol...

    Abraço e parabéns pelo aniversário do blog.

    Ricardo Mainieri

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