domingo, 28 de fevereiro de 2010

As cercanias de abril

Jorge Adelar Finatto

As cercanias
              de abril
me fazem passageiro
              da bruma

tenho medo do perfume
das flores mortas

serão só folhas
na ventania
              ou serei eu
navegando a bordo
da incessante perda?
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Poema do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
Foto: J.Finatto

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Uma tarde na estação

Jorge Adelar Finatto


Dentro de mim mora o cego da estação de trem de Passo dos Ausentes.

Ele espera o vagão invisível com os passageiros fantasmas.

Espera pra tocar o acordeom que alguém lhe deu quando ainda era um menino.

Um dia serás o músico da estação, um cargo muito importante, lhe disseram.

A estação é lugar de gente alegre e de gente triste.

Tem pessoas ali que carregam o coração rasgado.

Aos quinze anos ele assumiu o ofício de músico da estação ferroviária, um cargo público.

Nunca desde então um passageiro chegou ou partiu de Passo dos Ausentes sem ouvir seu acordeom.

Eram melodias melancólicas nos acordes iniciais, que aos poucos, como numa passagem de luz,  conduziam o ouvinte por um caminho suave, leve e colorido como o voo das borboletas.

Uma vez, numa tarde perdida de outono, sentei a seu lado no banco de madeira de pinheiro. Perguntei-lhe  por que continuava indo para a gare todos os dias, ocupando o seu posto, se já não existiam mais trens de passageiros.

- Eu quero estar aqui quando o trem voltar. Um dia ele volta. Nenhum passageiro pode ficar sem música na estação.

Durante muitos anos ele tocou na gare vazia, esperando o trem que nunca veio.

Eu quis saber se ele ainda tinha um sonho que queria realizar.

- Tenho, respondeu. Tirou os óculos escuros. Como se olhasse em direção aos dormentes cobertos de heras, disse que um dia gostaria de entrar no velho trem e partir pelo mundo com seu instrumento.

- Eu vivo muito solitário aqui na estação. Sou personagem de um filme antigo. Nada mais acontece em Passo dos Ausentes. Estamos sumindo. Os mais moços vão embora enquanto podem. Nem no mapa a cidade está. Somos invisíveis, desaparecidos na neblina dos Campos de Cima do Esquecimento. Meu sonho é poder levar minha solidão pra outro lugar, onde ao menos me vejam e escutem a minha música.

Tomamos uma xícara de café preto bem quente que ele trazia na garrafa térmica.

Uma luz dourada caía nas folhas dos plátanos.

Depois ficamos em silêncio, ouvindo o vento passar na estação.


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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Por que, ó mistério, nos maltratamos tanto?

Jorge Adelar Finatto


É difícil ser feliz numa cidade que trata o pedestre como inimigo. Inimigo de automóveis, motos, ônibus, caminhões e de tudo mais que anda e tem seres humanos na condução. Porto Alegre é uma das piores cidades do mundo para o caminhante. Não há respeito pela integridade física das pessoas. Por que, ó mistério, nos tratamos tão mal? Existem condutores que aceleram mais ainda os motores quando avistam alguém atravessando a rua. Idosos, crianças, adolescentes, pessoas com dificuldade de andar rápido são os mais expostos à violência, para não falar nos animais.

O excesso de velocidade e a direção perigosa colocam a vida em alto risco. Os motoristas dirigem agressivamente, no limite entre a culpa consciente e o crime doloso de trânsito. Não há desculpa pra isso. Depois de anos e anos de campanhas de esclarecimento e sensibilização, o que vemos é o triunfo da barbárie e da morte nas ruas e estradas. E dizer que um pouco mais de respeito, de gentileza e paciência fariam toda a diferença. Com boa vontade e cuidado, todos andariam mais e melhor. Os gestos de educação no trânsito, de tão raros entre nós, causam perplexidade. Os bons motoristas estão cada vez mais isolados. É comum serem agredidos com buzinaços, gritos furiosos e gestos obscenos toda vez que respeitam a travessia de alguém ou praticam um gesto de civilidade.

O que fazer? A cidade não tem mais pra onde crescer, o número de veículos aumenta, a distância entre eles  diminui, o caminhante não tem como fugir. Se cada um praticasse uma boa ação no trânsito por dia, seria um começo. Nunca entendi por que motivo o aeromóvel, idealizado e construído por um engenheiro gaúcho, não é utilizado para melhorar o escoamento do transporte público. Além de andar em trilhos, no alto, sustentado sobre colunas, não atrapalha o tráfego nem produz poluição.

Em Paris tem cartazes espalhados nas ruas, dizendo que o fato de o pedestre cometer um erro no trânsito não autoriza o motorista atropelá-lo e matá-lo. Nada importa mais do que a vida.  Na próxima segunda-feira, 1º de março, o trânsito volta à desumana rotina com o fim das férias. Deus nos proteja.

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Foto: J. Finatto. Começo do outono em Passo dos Ausentes.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

A força do amanhecer

Jorge Adelar Finatto

Desde o século passado, eu mesmo cuido dos meus sapatos.

Limpo, escovo, guardo. Ontem, num shopping de Porto Alegre, quebrei essa rotina. Dois jovens, um rapaz e uma moça, com cerca de vinte e cinco anos cada um, trabalhavam engraxando e dando brilho nos calçados. Sentei-me numa das cadeiras. Perguntei se havia outros trabalhando ali com eles. Me disseram que sim, duas mulheres e três homens revezavam-se durante os turnos. Indaguei ainda se estudavam. Resposta: sim, eram universitários.

A jovem que me atendeu era estudante de engenharia. O colega ao lado dela estudava computação. Eu fiquei impressionado com o exemplo deles. Estão ralando, trabalhando duro. Têm projetos de vida, lutam todos os dias para alcançar seus objetivos e, pelo que percebi, nada os deterá.

Eu também trabalhei em ofícios humildes, aprendi muito e me orgulho disso. Sei que todo trabalho humano é socialmente importante e digno do maior respeito. Tem quem prefira roubar os outros. Fazem qualquer negócio para alcançar dinheiro e poder. 

Aqueles jovens do shopping reforçam minha crença de que existe um outro Brasil, o das pessoas honestas, que acreditam no bem e numa vida melhor através do estudo e do trabalho. Gente que não aparece todo dia no noticiário, mas que está aí, viva, firme, fazendo o moinho do país girar.

Não duvido do poder da maldade. Mas acredito, acima de tudo, na força invencível da dignidade, da esperança ativa que constrói o amanhecer.


terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Visão

Jorge Adelar Finatto





Eu olho as velas brancas
dos barcos que cruzam
as águas escuras do rio

Sentado no banco do parque
eu observo o indescritível
declínio da tarde
sobre o Guaíba

Aqui embaixo do eucalipto
o sangue escorrendo nas veias
os pés firmes na terra
eu acompanho o lento movimento
das águas e do planeta

Estou condenado ao continente
ao monótono traçado das ruas
à intromissão do tédio e do medo

Mas o rio é um caminho
onde a emoção navega

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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Um Fernando Pessoa

Jorge Adelar Finatto

Os que amam a obra de Fernando Pessoa - aqui no Brasil esse amor é imenso e antigo - poderão receber notícias, novidades editoriais, entrevistas e informações preciosas sobre o grande poeta português no site Um Fernando Pessoa, de Portugal. Trata-se de espaço qualificado e com grande variedade de assuntos.

Eu disse poeta português? Seria melhor dizer poeta do mundo inteiro. Pessoa é filho da língua portuguesa, mas seu coração e seu verso batem fundo no peito de todos os homens e mulheres. Nunca o conheceremos de todo, será sempre um mistério. Por isso pessoanos de todo o universo nos encantamos e emocionamos a cada nova descoberta do poeta infinito.

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Visite:
http://www.umfernandopessoa.com/

O homem e os moinhos de vento

Jorge Adelar Finatto



O homem anda pela rua na tarde de julho. Uma alameda acolhedora no bairro Moinhos de Vento. A temperatura por volta dos 9°. A luz fria do sol de inverno atravessa a copa das árvores, derrama-se na calçada. Nos cafés, os frequentadores conversam enrolados em casacos de lã e echarpes coloridos.

Ele escuta o súbito e belo canto de um pássaro. Quer ver a ave entre os ramos, mas não consegue.

O nosso personagem experimenta, enquanto caminha, um bem-estar físico e espiritual que gostaria que nunca mais acabasse.

Estou vivo, eis tudo, pensa ele.

Existe vida depois do câncer, disse-lhe o médico, quando conversaram sobre as possíveis saídas.

Ele luta para expulsar o medo que insiste em rondá-lo feito trilha sonora de filme de terror. Esse medo recorrente que vem para lembrá-lo que algo ruim pode acontecer nessa tarde perfeita, como um vaso de gerânios ou uma marquise desabar na sua cabeça em plena rua.

Convence a si mesmo que é possível aproveitar o breve encanto de um simples passeio, sem o temor de um desastre iminente.

- O senhor tem alguma dúvida, algo que queira esclarecer nesse momento, antes de iniciarmos o tratamento? - perguntou-lhe o oncologista no dia do diagnóstico.

- Sim, doutor, acho que sim… Será que eu posso tomar um cafezinho depois que sair daqui? - foi a única reação, soltando o nó da gravata, suando a frio, sem conseguir pensar direito, como se estivesse andando no fundo do mar entre os restos de um naufrágio.

Enquanto sorve o café na mesinha de mármore, sob o que resta das folhas de um plátano, percebe que a vida é um milagre, apesar de tudo. Existe magia suficiente no fato de estar vivo, nos detalhes das coisas, nas pessoas que, em geral, são amáveis. Nunca tinha pensado nisso. Seria uma pena interromper a viagem existencial.

O homem que se sentia eterno até três meses atrás agora agarra-se a cada migalha de esperança, a qualquer possibilidade de continuar vivo.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

O Caderno 2, nova obra de Saramago

Jorge Adelar Finatto

Está sendo lançado (ainda não tenho informação de data) o novo livro de José Saramago, O Caderno 2, com textos por ele publicados no blog O Caderno de Saramago, que mantém no site da Fundação José Saramago.
 
Tem prefácio de Umberto Eco e reúne os posts que o autor escreveu entre setembro de 2008 e novembro de 2009. Até onde sei,  Saramago é o único Prêmio Nobel de Literatura a manter um blog na internet. Embora já não publique com a mesma frequência de antes, o blog continua sendo referência importamte para quem gosta de literatura.
 
Sou freguês do Caderno desde que surgiu. É um desses raros lugares na internet onde podemos encontrar sensibilidade, inteligência e talento a serviço do humanismo. Vale muito a pena.

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O Caderno de Saramago 

http://caderno.josesaramago.org/.

Fundação José Saramago

http://www.josesaramago.org/

Dois meses

Jorge Adelar Finatto


Amanhã, 22 de fevereiro, o blog completa dois meses de vida. É muito pouco tempo. Mas o suficiente para perceber que há pessoas interessadas em partilhar a palavra e a emoção. Aos amigos que têm visitado esta página o nosso obrigado. Estamos abertos, dispostos a conversar. Queremos mais claridade.

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Foto: J.Finatto

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O nome bonito dos barcos

Jorge Adelar Finatto


O Guaíba e os barcos habitam a alma do menino.
Tinha seis anos quando conheceu o rio.
Trazia no coração a saudade dos pinheiros,
o som do Arroio Tega, os abismos entre as montanhas.
Diante do menino, no dia que chegou a Porto Alegre,
o rio azul, imenso, com sede de mar.
Olhou para as águas e suas ilhas em silêncio.
Como estivesse só e perdido
fez um acordo com o rio:
nunca mais esqueceriam um do outro.
A escuridão daquele tempo os fez irmãos.
O longo e côncavo apito dos navios
era a música daqueles dias.
O cais recebia muitas embarcações.
Algumas grandes, com bandeiras de terras distantes.
O menino percebeu que os navios eram como as pessoas.
Sempre chegando e partindo.
Tentou aprender com eles a lição de ir embora sem se despedaçar.
Nunca conseguiu.
Um pedaço dele ficou em cada despedida.
Perdeu a conta dos estilhaços em que se partiu.
O menino saiu pelo mundo com um mapa rasgado nas mãos.
Tornou-se marinheiro de barco de papel.
Como um lírio plantado na escarpa, ficou só
exposto à chuva e ao vento.
Virou uma espécie de fantasma de si mesmo.
O coração do menino navega
no córrego perdido
entre os plátanos.
Se um barco flutua no ar
nos contrafortes da dor
se acaso um lírio
cai na correnteza
chamai pelo irmão rio
gritai o nome bonito dos barcos
para o menino reencontrar a aurora.

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Foto: J. Finatto. Velho barco no Guaíba com gaivota.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

As intermitências da primavera

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


O amor - ou esse sentimento que aproxima pessoas solitárias e desamparadas como ele - inaugurou datas no calendário, pintou de lilás, azul e rosa o coração, tocou doces músicas no som do carro e do apartamento. Tornou-o uma pessoa melhor para si e para os outros.

Um dia, talvez, ela, que gostava tanto de gatos, regressará da nuvem onde foi habitar. Virá buscá-lo, como sempre fazia, para irem ao cinema, ao café, à livraria, ao Parque Harmonia ver o pôr-do-sol na beira do Guaíba.

Ela foi o único ser humano que conseguiu resgatá-lo da ilha. Morreu há três anos de uma doença que não vale a pena lembrar, foi embora depois de sorrir e dizer a ele que não devia se preocupar, tudo ia dar certo. Perdeu-a pouco antes de irem viver juntos.

Teve relacionamentos, depois, que não duraram.

Sente-se um morto-vivo sem a mulher que o acolheu na solidão de náufrago. Não consegue fazer o tipo leve, desses à vontade no mundo. Gosta de pensar as coisas, procurar sentidos. Uma amiga disse-lhe que ele era muito certinho. A vida não era.

Um dia ele sonhou ser feliz para sempre. Mas a realidade disse que para sempre é tempo demais. 

A família dele, no passado, foi unida, mas agora vive dividida, os irmãos quase não convivem. A mãe, que em vida teceu com dedos de cristal os frágeis laços do afeto familiar, partiu antes do tempo. Ninguém a substituiu na difícil arte de evitar e, sobretudo, colar cacos. Os laços se partiram.

Ele voltou a viver na ilha depois da morte da companheira. Tornou-se um estrangeiro em sua própria cidade. Os amigos transformaram-se em meros conhecidos, foram se casando, criando filhos, separando, mudando de bairro, de cidade, de país. O seu mundo reduziu-se ao apartamento do bairro Bela Vista, ao trabalho, às idas ao mercado, às leituras, a uma eventual saída aos sábados.

O lugar onde vive - a remota ilha -  só não é uma tapera porque a velha empregada da família aparece duas vezes por semana, dá um ar de casa àquele deserto. Os únicos seres vivos ali, além dele, são as hortênsias que cultiva na sala, em dois vasos, um em cada lado da janela.

As hortênsias acendem as manhãs, iluminam a casa na escuridão.

A janela é seu ponto de referência no planeta.

Dali pode ver a praça e as pessoas, as árvores e a rua, o céu, os outros edifícios.

De qualquer parte do universo um observador atento pode tê-lo como objeto de estudos. Todos os dias, no fim da tarde, está ele na janela.

No fundo, nunca a perdoou por tê-lo abandonado na vida.

O medo de amar afeiçoou-se a ele como as heras num túmulo de cemitério do interior.

A solidão o faz acariciar um felino invisível, na frente da televisão, até adormecer.

Se fez tratamento sobre esse viver tão desolado? Sim. Mas continua o mesmo homem enclausurado, estranho no mundo, sem saber o que fazer com as mãos na presença dos outros.

O sexo de ocasião nunca foi pra ele. Tem receio das pequenas memórias, quando a dona delas vai embora. O que para muitos é diversão e esquecimento, pra ele pode ser vertigem.

A primavera chegou com um cesto florido de lembranças.

As inconstâncias do clima, dias chuvosos, frios, deixam as pessoas entocadas em casa.

A praça passa vazia. A vida vista da janela perde o colorido.

Se ao menos ele tivesse um gato de verdade. Mas não sabe o que faria diante do olhar do bicho ao ver o dono tão desamparado pela casa e pela vida.

Os gatos percebem essas coisas, ela disse.

- Um dia desses vou sair lá fora, sentir o sol no corpo, ver as pessoas de perto. Ainda saio da janela-, ele pensa.

Com o gato no colo, ele adormece no sofá e, às vezes, até sonha.

Uma outra mulher. Nem precisava ser o grande amor. Um terno sentimento, um querer bem. Uma pessoa pra dividir a conversa, a palavra, dormir abraçado, ver um filme, ler um livro em silêncio, lavar a louça, caminhar na praça.

Uma mulher que queira ficar a seu lado, no fim da tarde, tomando chimarrão.

As intermitências da primavera fazem o coração girar louco na ventania.

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Foto: Jorge Finatto

jfinatto@terra.com.br

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

As urgentes evasões

Jorge Adelar Finatto


A necessidade de evasão da realidade é tão antiga quanto a presença do ser humano na Terra. Ultimamente, diante de tantas tragédias, medos e angústias, quem não pensa em tirar umas férias da realidade e viajar para uma ilha de sol e paz longe da loucura?

Essas ilhas estão cada vez mais distantes.

O problema do cotidiano é que tem realidade demais, e muito poucas janelas para a harmonia.

Pretender mudar a vida é uma forma de evasão de um mundo que já não serve, em busca de outro, que não conhecemos muito bem, mas deve ser melhor e mais humano.

Muda-se a realidade mudando a própria vida.

A existência só é suportável na medida em que podemos transformá-la.

Essa página a ser escrita é o que pode nos salvar em meio à miséria humana em que vivemos.

Por que a necessidade de mudar? Porque há injustiça demais, atrocidades e violência demais, catástrofes demais, corrupção demais, sofrimento demais. As regras postas na velha maneira de fazer política e viver em sociedade não permitem a chegada de dias melhores.

Um sistema iníquo esmaga os sonhos de pessoas que querem viver honestamente.

A cena brasileira cansa, exaspera, tritura a paciência. Condutas de homens públicos envergonham e fazem corar as estátuas nas praças.

O resto do mundo não é muito diferente.

As coisas boas acontecem tão lentamente que é como se não acontecessem.

O noticiário é patético.

A esperança? É um dever para todos, principalmente para os mais jovens que não podem naufragar no desespero.

Precisamos urgentemente abrir a janela para o sol entrar.

Tem gente do bem lutando para construir dias mais claros, com menos crianças nas ruas, o coração mais aberto ao outro.

Resta acreditar na luta cotidiana, que começa com a gentileza no trato com os semelhantes, na recusa terminante a qualquer forma de violência como meio de resolução de conflitos, no respeito a todos os seres, no repúdio à indiferença diante do quadro que se apresenta.

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Foto: Jorge Finatto

jfinatto@terra.com.br

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Nem leis, nem justiça

José Saramago

Em Portugal, na aldeia medieval de Monsaraz, há um fresco alegórico dos finais do século XV que representa o Bom Juiz e o Mau Juiz, o primeiro com uma expressão grave e digna no rosto e segurando na mão a recta vara da justiça, o segundo com duas caras e a vara da justiça quebrada. Por não se sabe que razões, estas pinturas estiveram escondidas por um tabique de tijolos durante séculos e só em 1958 puderam ver a luz do dia e ser apreciadas pelos amantes da arte e da justiça. Da justiça, digo bem, porque a lição cívica que essas antigas figuras nos transmitem é clara e ilustrativa. Há juízes bons e justos a quem se agradece que existam, há outros que, proclamando-se a si mesmos justos, de bons pouco têm, e, finalmente, não são só injustos como, por outras palavras, à luz dos mais simples critérios éticos, não são boa gente. Nunca houve uma idade de ouro para a justiça.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Os lírios famintos

Jorge Adelar Finatto


Existe um ser cada vez mais raro na face do universo.

Astrônomos passam as noites em claro, mirando os telescópios para o desconhecido, na incansável busca.

No momento em que traço essas linhas, inúmeras expedições científicas partem pelo cosmo à procura dele.

É quase tão belo como a estrela da manhã. É mais luminoso que a aurora boreal. É mais precioso que o mais raro diamante.

Por causa dele, blogueiros do mundo inteiro invadem as noites oferecendo seus serviços. Impressionantes editores perdem o sono a sua menor lembrança.

O ser em questão - esse misterioso - é o senhor da lista dos mais vendidos, o sonho dos famélicos e maltrapilhos fazedores de livros. Por ele, Cervantes e Thomas Mann foram às vias de fato, Dom Quixote e Hans Castorp romperam relações.

Macunaíma, Anjo Malaquias e Urutu Branco não trocam mais e-mails. É o início do fim dos tempos, ou quase isso.

Os cafés literários perderam o sentido sem a poderosa presença do desaparecido.

As livrarias estão repletas de musas e personagens desempregados. Seria cômico, não fosse o fim de uma era.

Onde andará aquele que é a razão do meu trabalho?, perguntam-se miríades de escritores e poetas, na fria solidão.

A Academia Sueca devia criar o Prêmio Nobel de Leitura, em homenagem a ele, o inefável.

As noites de autógrafos, hoje, só são bem-sucedidas quando é ele quem assina os livros, enquanto os autores esperam a vez na infinita fila.

Não vereis dele mais que o fugidio vulto esgueirando-se no labirinto dos blogs e soturnas bibliotecas.

No entardecer de ontem, cerca de 150 bardos - entre maus, razoáveis e bons - cometeram suicídio no cais de Porto Alegre. Sob o olhar aterrorizado das mães e gritos desesperados das namoradas, os suicidas foram ao fundo do rio com grossos volumes amarrados ao pescoço.

Mais de mil caravelas estão partindo nessa hora de Lisboa em busca de um rastro do indizível em alto mar.

O impensável está acontecendo.

Escritores enlouquecidos batem-se em sangrentos duelos nas praças e ruas da cidade.

As últimas notícias dão conta de que lírios famintos estão atacando e devorando escritores. Invadem seus locais de trabalho e, com requintes de crueldade, cometem o bárbaro crime. Aproveitam-se da solidão literária das vítimas, que começa no ato de criar e se estende até o texto sem leitor, e as destroçam.

Só restam folhas brancas, embebidas em sangue, espalhadas no chão.

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Foto: Jorge Finatto

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Roberto Saviano, a morte em vida e a sonhada primavera

Jorge Adelar Finatto




O escritor italiano Roberto Saviano afirma que não sabe se está meio morto ou meio vivo.

O fato é que não é mais dono de sua vida. Passa as 24h do dia sob rigorosa proteção policial. Qualquer movimento que faz depende de um cuidadoso detalhamento de segurança.

Para tomar um cappuccino ou comprar uma simples escova de dentes, são necessários complicados arranjos sobre escolha de lugar, formas de chegar e sair, horários, etc. Para não ser morto, muda-se constantemente de endereço.

O drama começou desde que Roberto Saviano publicou o livro Gomorra¹, no ano de 2006, pela editora Mondadori. Nele conta as histórias e a maneira de atuar da Camorra, a máfia da região da Campânia, na Itália, onde está localizada Nápoles, cidade em que nasceu em 1979. Segundo dados do chefe dos carabinieri de Nápoles, general Gaetano Maruccia, responsável pela segurança do escritor, a Camorra tem cerca de 80 clãs e mais de 3.000 integrantes armados, além de uma grande rede de colaboradores.

Os mafiosos não aceitaram a indelicadeza do jovem autor em revelar acontecimentos, esquemas de funcionamento e nomes de integrantes da organização criminosa. Através de ameaças, os Casaleses - clã da Camorra do povoado onde ele cresceu, Casal di Principe - comunicaram-lhe que foi sentenciado à morte.

A máfia não perdoou a divulgação de suas atividades. Não tolerou o fato de a obra tornar-se um êxito editorial poucas vezes visto na Itália e nos países para os quais foi traduzida. Mais de dois milhões de exemplares vendidos em todo o mundo. Um filme foi feito com base no livro. Dirigido por Matteo Garrone, ganhou o Grande Prêmio de Cannes em 2008.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

A junta do motor

José Saramago

Desde há mais de sessenta anos que eu deveria saber conduzir um automóvel. Conhecia bem, naqueles remotos tempos, o funcionamento de tão generosas máquinas de trabalho e de passeio, desmontava e montava motores, limpava carburadores, afinava válvulas, investigava diferenciais e caixas de mudanças, instalava calços de travões, remendava câmaras de ar furadas, enfim, sob a precária protecção do meu fato-macaco azul que me defendia o melhor que podia das nódoas de óleo, efectuei com razoável eficiência quase todas as operações por que é obrigado a passar um automóvel ou um camião a partir do momento em que entra numa oficina para recuperar a saúde, tanto a mecânica como a eléctrica. Só faltava que me sentasse um dia atrás do volante a fim de receber do instrutor as lições práticas que deveriam culminar no exame e na sonhada aprovação que me permitiria ingressar na ordem social cada vez mais numerosa dos automobilistas encartados. Contudo, esse dia maravilhoso nunca chegou.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Enquanto a manhã não vem

Jorge Adelar Finatto

Escrevo no tarde da noite.

Confesso que pouco sei sobre este tempo e seus soturnos habitantes. Sou parte do drama.

Sei o que sinto. E sentindo me dou conta que está ficando cada vez mais difícil sentir a realidade.

Faz poucos dias, em Porto Alegre, um menino com cerca de 10 anos foi morto dentro de casa com 34 facadas, num bairro pobre da cidade. Os assassinos seriam dois assaltantes, o caso está sendo investigado.

O menino estava sozinho enquanto a mãe trabalhava como doméstica.

Não sei o que fazer com isso. Estou mergulhado na escuridão que nos cerca.

Que sociedade é esta que gera monstros assim?

Que tipo de ser humano é capaz de cometer um crime dessa natureza?

Que justiça será capaz de reparar crimes como esse?

Quem devolverá a essa mãe o sentido de viver?

Que sentimento, ou falta de, faz com que o caso seja esquecido dias depois e ninguém mais fale no menino, na sua mãe, na casa destruída?

Quem se ocupará dessa dor depois que os jornais não tocarem mais no assunto?

O pouco que sei me diz que não foram apenas o menino e sua mãe que perderam algo irreparável.

A humanidade toda perdeu.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Ilhas e taperas

Jorge Adelar Finatto

photo: Eduardo Tavares. Veleiro em Porto Alegre


Um dia desses saí a navegar pelo Guaíba no meu barco de papel.
Às vezes se chama Sonhador, outras, Solidão.
No itinerário, desembarquei em algumas ilhas.
Confesso me assustei com as taperas que nelas encontrei.
Tapera, do tupi, aldeia extinta.
Habitação em ruína, lugar abandonado.
Filipo, o papagaio que me acompanha, costuma dizer tapera é em nós que ela existe.
Nos nossos gestos vazios, nas nossas omissões, na impotência de mudar a vida.
De tão abandonadas, as ilhas se transformam em território de fantasmas.
Cada um de nós é uma ilha nessas águas tão fundas do viver.
Quando olho em volta da minha ilha, encontro outras ilhas. Muitas ilhas.
Apesar da quantidade e da proximidade, não formamos  um arquipélago.
Existimos isoladamente.
Os habitantes das ilhas querem falar e ser ouvidos.
Raros, contudo, dispõem-se a escutar.
Esse o flagelo que assola o mapa das ilhas.
Habitamos taperas modernas, com computador, blogue, máquina de lavar, tv a cabo, aparelhos de som, ar-condicionado, mil coisas.
Em nosso íntimo, continuamos homens e mulheres das cavernas, com poucos amigos. Solitários, primitivos.
Lutamos para sobreviver, saímos à caça todas as manhãs, disputamos ferozmente espaços no  mercado de trabalho, no mercado das paixões.
Desconfiamos quando nos mostram os dentes ao sorrir.
Dores e medos são curtidos no recesso como se não existisse mais ninguém no bairro.
As nossas moradias, tugúrios onde nos escondemos. Planejamos a fuga para um lugar que não sabemos se existe, mas deve ser melhor.

Olho o movimento dos barcos na entrada do cais.
Ouço o ruído seco do vento na vela branca.
Uma gaivota atravessa o rio.
O entardecer aprofunda o exílio.
Não conseguimos formar um arquipélago.
O Guaíba embala a solidão das ilhas e taperas.

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Foto: Eduardo Tavares. Veleiro em Porto Alegre.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Henrique do Valle

Jorge Adelar Finatto




A última vez que o vi foi na Praça Dom Feliciano.

Era uma dessas manhãs mágicas de Porto Alegre. Céu azul claro, vento leve, a luz âmbar escorrendo entre as árvores. Devia ser maio.

Aquele lugar, no início do século XX, tinha o nome de Praça da Misericórdia. Estava na frente, do outro lado da rua, do grande edifício da Santa Casa, como ainda hoje. Dali se podia avistar o Guaíba e os barcos passando ao fundo. Era o local de encontro do Grupo dos Sete, formado por jovens poetas simbolistas, entre os quais figuravam Alvaro Moreyra e Felipe D´Oliveira.

Naquele dia, meu amigo poeta estava acompanhado de uma linda mulher. Parecia feliz, em paz com a vida. Saí do encontro contente ao perceber nele uma celebração nova diante da existência, uma maior paciência em relação à difícil realidade cultural, humana e política daquele final dos anos setenta.

Pouco antes de morrer, em 1981, aos 22 anos de idade*, Henrique do Valle me confiou alguns poemas. “Espero que aproveites estes textos”, escreveu no envelope. Eu não estava em casa. Lembro que chovia muito naquela tarde. Na época, eu organizava uma revista literária com poetas de vários cantos do Brasil. Quando encontrei o recado, lamentei o desencontro. Queria muito conversar com ele.

Eis um dos poemas daquele envelope encantado:


Te chamei porque queria que guardasses
meus peixes e flores
agora que vou viajar.

Conhecerei novas terras, outras pessoas
e isso me enche de tanta alegria
que nem sei como expressar.

Prometo que te trarei presentes
e que te contarei tim tim por tim tim
tudo que passei.

Mas até eu voltar, dá uma força,
cuida bem dos meus peixes e flores.