segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

A palavra, pedra de toque da literatura e da psicanálise *

Maria Helena Martins
Diretora-Presidente do Centro de Estudos de Literatura e Psicanálise Cyro Martins. Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo





Proponho uma aproximação com a Literatura e a Psicanálise pelo caminho que parece mais fácil – o da palavra. Ambas acontecem nela e por meio dela; é ela a pedra de toque para, simultaneamente, avaliar, manter um tanto de mistério e conferir verossimilhança e credibilidade indispensáveis a uma e outra, em suas aspirações à arte ou à ciência. Essa constatação talvez demarque o início e o fim de uma possível reciprocidade. Mas nada impede um exercício de reflexão sobre ambas em simbiose com a palavra.

Começo pelo óbvio, mas indico seu avesso. Quase sempre se tem um nome na boca e na mente, embora sem dizê-lo. Por isso mesmo a palavra exige atenção especial. Principalmente quando escrita, pode ser a salvação ou a perdição de quem escreve, que muitas vezes lamenta suas próprias limitações ou os limites de sua matéria prima. Não à-toa, Mario Quintana considera

Bem-aventurados os pintores escorrendo luz
Que se expressam em verde
Azul
Ocre
Cinza
Zarcão!

Bem-aventurados os músicos...
E os bailarinos
E os mímicos
E os matemáticos...
Cada qual na sua expressão
Só o poeta é que tem de lidar com a ingrata
[linguagem alheia...
A impura linguagem dos homens!

Essa auto-ironia salva o poeta de lidar com a palavra como a gente o faz - prosaicamente. Esse poema reforça minha suposição de que a palavra só se caracteriza como pedra de toque da arte literária e da psicanálise, quando ousa o descaminho e quando não é tratada com excesso de zelo ou com gratuidade.

Assim como faz o personagem de Shakespeare - Touchstone - que, entre bufão e sábio (des)vela, em suas falas, fraquezas, virtudes, contradições humanas, conforme as instâncias da vida. Além disso, porque tem livre trânsito entre o prosaico e o poético, entre as ciências e as artes, entre “homens”, como diz Quintana, e poetas, a palavra tende a ser desfrutável. Mas, todos sabemos, jamais é inocente. Daí o desafio.

No estudo da obra literária - à semelhança da abordagem psicanalítica -, se aprende a necessidade de estranhar o óbvio, isto é, a não passar batido pelos textos ditos e escritos como algo já sabido, ainda que aparentemente simples. Importa (re)conhecê-los, conhecê-los de novo. Esse esforço de estranhamento parece ordinário quando é pouco exercitado, mas trata de um processo que, mesmo sendo desencadeado intuitivamente, passa a demandar procedimento sistemático na utilização de técnicas interpretativas, por parte do estudioso. E, para poetas e psicanalistas, representa o convívio com a polissemia da palavra, com as possibilidades e os riscos que isso significa para seus trabalhos. Daí o conselho de Drummond:

..........
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
Tem mil faces secretas sob a face neutra
E te pergunta, sem interesse pela resposta,
Pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?


Aqui volto-me para a questão da leitura, companheira da palavra na relação entre literatura e psicanálise. Tome-se leitura de modo amplo, como processo de atribuição de significados a diferentes formas de expressão, por meio dos sentidos, das emoções, da razão. Processo esse necessariamente marcado pelas circunstâncias de tempo e espaço. Isso querendo também dizer que acontece no decorrer das experiências de vida, desde as mais elementares e individuais às oriundas do intercâmbio do mundo pessoal de quem lê com o contexto social e cultural em que vive. Até aí se tem uma noção elementar, possível de ser pensada como processo expresso em palavras para realizar seja um estudo literário seja uma interpretação psicanalítica. Entretanto, não se limita a isso. À medida que nos detemos ora num campo ora noutro, e desenvolvemos leituras, o que é lido e o processo de leitura vão mostrando nuances, obscurecendo evidências, envolvendo-se em outros mistérios. E a palavra, que inicialmente parecia trazer a resposta, se mostra insuficiente, interpondo-se os não-ditos.

Surgem, então, questões perturbadoras. O que se passa no espaço-tempo pré-verbal, em que memória e imaginação, passado e presente se entrecruzam, num átimo, tudo atualizado por fantasias, circunstâncias pessoais e contextuais da vida, antes mesmo de se fazer signo linguístico? Que mutações ocorrem nos desvãos da palavra, entre o antes e o depois dela? Entre o que lemos, a fresta dos entre-ditos, entre-vistos, entre-lidos e o que revelamos disso? O que acontece entre a percepção da linguagem e a expressão do que ela significa; entre o que captamos do mundo e de nós mesmos, a elaboração disso e a revelação do processo numa palavra, num discurso? Filósofos, artistas, cientistas persistem buscando respostas. A psicanálise e a literatura se desenvolvem tentando desvendar essa incógnita inscrita na encruzilhada cérebro-mente.

Por ironia, é devido a essa mesma complexidade que até a leitura de uma trivialíssima lista de compras em supermercado será realizada diferentemente, dependendo do leitor e da situação em que aconteça. Mais surpreendente ainda é que, apesar disso, podemos compartilhar leituras, fazendo da individualidade de cada experiência uma possibilidade de outras, para nós e para outros leitores. Tudo por conta das palavras e das “franjas do discurso” (as entrelinhas) que aprendemos a decifrar/interpretar, modulando significantes e significados. Aliás, sem esse procedimento - que as vivências vão refinando - seríamos dicionários/manuais ambulantes, não-pessoas.

Continuando nesse tom singelo: cada um que leia este texto que escrevo está fazendo uma leitura individual do que digo. Leitura essa permeada pelos outros tantos textos/falas que afloram junto com o meu discurso. Apesar dessa constatação acaciana, certamente o conhecimento das diversas leituras provocaria curiosas revelações. E, se isso ocorre com um texto, uma fala corriqueiros, imagine-se o que pode suscitar um escrito científico, filosófico ou poético. Ou a associação livre de idéias expressas em palavras entrecortadas por silêncios... Surge, assim, outra evidência: a leitura – o processo de atribuição de significados, a interpretação – jamais será uma questão de hábito ou de aplicação de esquemas ou de rótulos. Ao contrário, requer disponibilidade, quando não esforço, para ir além do já sabido.

Um bom mote para ultrapassar essa evidência – e ao mesmo tempo indicar uma relação entre literatura e psicanálise pelo viés do processo de elaboração da linguagem – se encontra no conto de Guimarães Rosa, “O Espelho” . Esse texto relata uma “experiência” possível de resumir com a visão que um indivíduo tem de seu próprio reflexo no espelho em sucessivas aproximações; as transformações que observa: as reflexões que elas provocam. Matéria de conversa banal, pareceria. No entanto, o narrador insiste: os olhos “são a porta do engano”. Esse texto, como de resto grande parte da obra do autor, é emblemático dos enigmas da alma e das penosas tentativas de desvendá-los. O narrador adverte: “Não se esqueça, é de fenômenos sutis que estamos tratando”. Exemplo disso está na expressão “a alma do espelho”, para a qual o narrador chama a atenção, reconhecendo-a como “esplêndida metáfora”. De fato, ela inverte a imagem gasta (aquela que vê o olhar como espelho da alma). Assim, atravessando nossa imaginação, a imagem desemboca na inapelável e reveladora presença do que Guimarães Rosa identifica como o “eu por detrás de mim”, “a minha vera forma”.

Uma vez atravessado o evidente, deparamos um caminho sem retorno. Não dá para “desler”, diria Mario Quintana. Daí que o narrador do relato de Rosa quase se exaspera no diálogo angustiado com seu interlocutor invisível e inaudível:

Devia ou não devia de contar-lhe, por motivos de talvez. Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano – intersecção de planos – onde se completam de fazer as almas?

A sintaxe complexa, o uso de palavras incomuns e neologismos aumentam as dificuldades de leitura, dando um tom cifrado ao discurso, enquanto potencializam os significados. Porém, numa releitura, já se vislumbram sentidos. Vejamos. Dúvidas: “Devia ou não contar-lhe, por motivos de talvez. Do que digo descubro, deduzo. Será se?”. Incapacidade de identificar o óbvio: “Apalpo o evidente?”. Infinitas buscas: “Tresbusco”. Ânsia de compreensão existencial: “onde se completam de fazer as almas?”

Aqui procuro sublinhar outras razões da escolha desses exemplos. Mesmo numa leitura simplificada, se percebem alguns dos enigmas que a literatura e a psicanálise deparam desde seus começos (sem falar na simbologia do espelho). Reforça-se aí a relação vital de ambas com a palavra que, simultaneamente, configura a representação e a quintessência de alguma coisa, de um modo de ser e sua avaliação, bem como seu encobrimento:

São sucessos muito de ordem íntima, de caráter assaz esquisito. Narro-os sob palavra, sob segredo. Pejo-me. Tenho de demais resumi-los.

De novo, o texto de Guimarães Rosa ajuda a entender que nem a criação literária nem a investigação psicanalítica tem o poder de desvendar ou descobrir os recônditos do ser humano in totum, por mais que se aproximem dessas profundezas. Elas próprias permanecem sob a penumbra do inalcançável para a maioria dos indivíduos – seja enquanto criação e fruição, seja enquanto investigação e acompanhamento do processo analítico.

Já aí se reencontram seus elos mais remotos, donde mesmo o leigo pode perceber que se iluminam mutuamente, literatura e psicanálise, nos seus possíveis e imponderáveis . Vale aqui retomar a noção de iluminação mútua, porque é, a seu modo, uma extensão da metáfora do espelho. Invoco-a também porque viabiliza a leitura contrastiva, isto é, permite verificar, na literatura e na psicanálise, as especificidades de cada uma, sem descaracterizar ou submeter uma à outra. Ao contrário, sempre podendo uma e outra ser recurso para ampliar o conhecimento de ambas, aclarar. E principalmente criar alternativas à tendência de ficarmos “nos eternos achados”.

Parafraseando Roland Barthes, diria que a psicanálise usa a palavra como instrumento de comunicação, entendimento, interpretação; a literatura – enquanto expressão estética – trabalha a palavra como matéria-prima, explorando-a como som, sinal e significado, à semelhança do escultor manipulando a pedra . As duas originadas no e voltadas para o ser humano, suas vicissitudes, seus sonhos, seus conflitos, suas realizações, cada uma a seu modo. E ambas jogam com a palavra, embora com regras e valores diferentes.

Tanto na literatura quando na psicanálise, os procedimentos, a polissemia, a ambiguidade semântica são artifícios de linguagem que provocam mudanças nas relações significativas entre textos, motivos, temas, histórias vividas e fantasiadas influenciando modos de ler a si próprio, o outro, o mundo. Por isso é fácil, tanto no universo da literatura como no âmbito da psicanálise, as pessoas confundirem-nas e se confundirem com elas, as palavras. Em sua mobilidade e transitoriedade (estão sempre contextualizadas), se transfiguram quando parecem almejar a permanência, se cristalizam quando poderiam se transformar. Resta saber até que ponto os resíduos desses entrecruzamentos se mesclam e metabolizam, originando novos modos de conhecer e criar, repercutindo no processo da criação literária e no processo psicanalítico. Também fica a saber qual o grau de interferência do escritor e do psicanalista nesse processo e no alvo de seus fazeres – o leitor e o, assim dito, paciente.

Aqui, de novo, deparamos a palavra como detentora dos possíveis e dos interditos. Falada ou escrita, é um bem adquirido, de uso e troca; um meio de dominação e de submissão; trunfo do poder e sinal de fragilidade. Já vimos que ela transita em todas as camadas da sociedade, em quaisquer campos e níveis de conhecimento, em inúmeras manifestações culturais e artísticas, em todas as áreas, no cotidiano como em situações excepcionais, no âmbito popular como nos circuitos especializados. E em tempo de emissão/recepção on-line, a palavra portadora de informações, idéias, sentimentos, é tão divulgada quanto banalizada.

Cresce, então, a necessidade de pensar e discutir inter-relações de diferentes conhecimentos; de se avaliarem benefícios e prejuízos que essa realidade possa trazer para o universo social, sendo sua portadora a palavra. Esta se projeta, portanto, além do prosaico e do poético, de exercícios de linguagem, de discursos cifrados ou ainda aparentemente vazios. Grandes mudanças desestabilizam o status quo de todas as áreas, devido à rapidez cada vez maior com que as palavras são transmitidas, repercutindo nas práticas culturais e profissionais, nos indivíduos e nas comunidades exigindo reequacionamento de projetos pessoais e compromisso com o “destino coletivo”, especialmente de quem domina a palavra e é seu mediador, utilizando-a como ponte para todo e qualquer ensinamento ou interpretação da realidade. Cabe então pensar sobre o que diz Cyro Martins:

Nós, estudiosos, como agentes do futuro, temos deveres e privilégios. Estes são prerrogativas de quem chega na frente. Os deveres se referem ao destino coletivo (...) A primeira medida deverá consistir na renúncia das palavras pretensiosas que conduzem ao pseudoconhecimento conceitualizado, forma neutralizadora do contato direto com a realidade.

O horizonte da função social e cultural da palavra se estende, pois, ao longo do que expus aqui – e talvez se deva salientá-lo. Entre o domínio da palavra e o domínio pela palavra há muito mais que uma troca de preposições: se ergue aí o impedimento maior da exclusão social e da prepotência, ao que precisamos responder à altura de nossos deveres como “agentes do futuro” e responsáveis pelos nossos atos e omissões, nossas falas e nossos silêncios perante àqueles que ainda não têm voz nem vez, porque não dominam a palavra ou que dependem de nós para se apropriarem dela e de seu destino como indivíduos e cidadãos.


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* Texto originalmente publicado em MARTINS, Maria Helena. A palavra, pedra de toque da literatura e da psicanálise. Literatura e psicanálise: fronteiras, margens, perspectivas. In: MASINA L, CARDONI V. Literatura comparada e psicanálise: interdisciplinaridade, interdiscursividade. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto; 2002. p.156-162.


1. Não cabe desenvolver a questão aqui, mas não será apenas porque a relação entre literatura e psicanálise está na nascente da própria obra de Sigmund Freud que a atração por aproximar uma a outra persiste. Conforme se realizam estudos da linguagem, dos processos cognitivos, das intersecções que as neurociências revelam, surgem novas motivações para isso. Mas as relações que se estabelecem são assimétricas. Um equilíbrio, uma reciprocidade entre esses campos ainda parece pouco provável, pois a tendência é de se tornar ora um ora outro parasitariamente (a literatura sendo o campo mais propício a esse uso). Assim, uma integração simultânea, que permita o estudo da dialética de poesia e neurociência, mente e cérebro, consciente e inconsciente, ainda estaria por acontecer. (cf. ENGBER, Dan. “The Integration of Literature and Neuroscience... And Its Inhibitors”. In: The Harvard Brain, Spring 1996. http:hcs.harvard.edu/~husn/BRAIN/vol3/b96txt.html#The Integration of...). Já na ousada proposta da Neurofilosofia se vislumbram possibilidades mais concretas. Ao formular suas indagações e estabelecer relações entre teorias da ciência e da filosofia da ciência orientando-as para uma filosofia da mente, Patrícia Smith Churchland abre perspectivas para uma ciência que englobe conhecimentos, formulando uma teoria voltada para a unidade mente-cérebro. Talvez se encontre aí novo e fértil caminho a trilhar em busca de expressões da essência humana. (CHURCHLAND, P.S. Neurophilosophy: toward a unified science of the mind-brain. Massachusetts, MIP Press, 1986).
2. QUINTANA, Mario. “Bem-Aventurados”. In: Antologia Poética. Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1966 (org. Rubem Braga).
3. A propósito: “zarcão” quer dizer “cor de ouro”, “de tijolo muito vivo”, “alaranjado” (palavra de origem persa). A palavra desperta a memória visual de quem conhece o mundo árabe, mas certamente atiça a imaginação de quem sequer saiba seu significado. E presume-se que o poeta jogue com o imponderável que ela posa instaurar.
4. SHAKESPEARE, William. As you like it [1599-1600]. In: The complete works of William Shakespeare. London and Glasgow, Collins. 1959. p.254 e segs.
5. ANDRADE, Carlos Drummond de. “Procura de Poesia”. In: Antologia Poética. Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1962. p.186.
6. A partir dessa formulação, procuro mostrar que o processo de leitura começa antes e vai além da palavra. MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. São Paulo, Brasiliense, 1982.
7. ROSA, Guimarães. “O Espelho”. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1962. p.70 e segs. As transcrições que seguem, entre aspas, são desse texto.
8. Id, Ibid, p. 78.
9. Id. Ibid. p. 77.
10. A expressão “iluminação mútua” é de WEISSTEIN, Ulrich (Literature and the other arts. Bloomington Indiana University Press, 1978). O autor se refere a manifestações artísticas em diferentes linguagens, acentuando que não se trata de negar a especificidade de cada uma, suas dificuldades próprias da interpretação, envolvendo padrões e termos técnicos diferentes. Ao contrário, essas peculiaridades, pelo contraste, podem se esclarecer.
11. MARTINS, Cyro. O autor alerta: “os estudos psicanalíticos de obras de ficção e de arte em geral, que se restringem à busca dos conteúdos pulsionais, numa perigosa simplificação, corre o risco grave de se monotonizarem, pela repetição dos eternos achados. “A Criação Artística”. In: __________. O Mundo em que vivemos. Porto Alegre, Movimento, 1998. p. 39 e segs. (2ª ed).
12. BARTHES, Roland. “Escritores e escreventes”. In: Crítica e Verdade. São Paulo, Perspectiva, 1970, p. 31 e segs.
13. MARTINS, Cyro. “O mundo em que vivemos”. In: Op. cit. p.120.

Foto: Jorge Finatto

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